D. José Policarpo
escreve aos padres
sobre o Motu
Proprio
O sacerdote não deve pôr o acento no seu
possível gosto pessoal
Pela Liturgia anterior à Reforma Litúrgica
Carta a todos os
Presbíteros que exercem
O seu ministério no
Patriarcado de Lisboa
Caros Padres,
1. Dirijo-me a vós
num momento da vida da Igreja, em que se exige particular discernimento
pastoral: a publicação por Sua Santidade o Papa Bento XVI da Carta Apostólica,
dada sob a forma de “Motu Proprio”, “Summorum Pontificum Cura”. O “Motu Proprio”
regula o uso, na Liturgia, do “Missale Romanum”, na sua última edição de 1962,
promulgada pelo Papa João XXIII, como forma extraordinária de celebração da
Liturgia católica segundo o Rito Romano.
Ao apresentar este
“Motu Proprio”, o Santo Padre escreveu uma Carta aos Bispos de todo o mundo,
cujo texto é indispensável para a interpretação e aplicação pastoral do
referido “Motu Proprio”.
Ambos
os textos serão publicados no “Vida Católica”.
O Santo Padre
reconhece que a notícia da publicação destas Normas provocou duas reacções: uma
entusiasta aceitação e uma férrea oposição. Espero que, entre nós, nenhuma
destas atitudes extremas prevaleça. Considero que as pessoas que desejam
celebrar a Liturgia do Missal de 1962 são, entre nós, uma minoria, embora permeáveis
ao que se passa noutras Igrejas. É mais plausível a reacção daqueles que sentem
desgosto, pensando que se pôs em questão o Concílio Vaticano II e o seu “ex
libris” que é a Reforma Litúrgica. De facto, muitos de nós vivemos com grande
entusiasmo a Reforma Litúrgica e o espírito de “aggiornamento” proposto pelo
Concílio, e isso modelou a nossa forma de ser cristão e imprimiu o rosto às
comunidades cristãs, que aprenderam a viver a Liturgia, não apenas como
manifestação da fé pessoal, mas como expressão viva de um Povo que se reconhece
como comunidade quando celebra a Sagrada Liturgia.
Em espírito de
comunhão com o Santo Padre, escutando-o e obedecendo-lhe, queremos pôr
pastoralmente em prática, com o discernimento que a sua aplicação a uma
situação concreta exige, a sua orientação para toda a Igreja, percebendo as
motivações que o moveram e os objectivos que pretende alcançar.
Apesar de o “Motu
Proprio” dar uma grande autonomia de decisão aos Párocos e, em certos casos, a
todos os Sacerdotes, o Bispo não deixa de ser, como o Santo Padre reconhece,
citando a “Sacrossanctum Concilium”, nº 22, o moderador da Liturgia na própria
Diocese: “O governo da Liturgia depende unicamente da autoridade da Igreja:
pertence à Sé Apostólica e, nas regras do direito, ao Bispo” (S.C., nº22). Na
construção da unidade da Igreja diocesana, a aplicação deste “Motu Proprio”, no
respeito pela autoridade do Santo Padre, expressamente manifestada, será
definida pelo Bispo diocesano, com a colaboração do Departamento de Liturgia da
Diocese.
Os motivos e objetivos
do Santo Padre
2. Antes de mais, o
bem dos fiéis, daqueles que desejam a celebração segundo o Missal de 1962,
porque procuram aí a dimensão sagrada do mistério da Eucaristia, que também
podem encontrar na celebração segundo o Missal de Paulo VI, que devem em
qualquer hipótese aceitar, porque continua a ser, para toda a Igreja, a forma
normal de celebrar a Liturgia. O Santo Padre afirma mesmo que, vencidos os
exageros de uma criatividade litúrgica mal concebida, é ocasião de imprimir
nesta forma normal de celebrar a Missa toda a sua dimensão sagrada. Diz Bento
XVI na Carta aos Bispos: “Na celebração da Missa segundo o Missal de Paulo VI,
poder-se-á manifestar, de maneira mais intensa do que frequentemente tem
acontecido até agora, aquela sacralidade que atrai muitos para o uso antigo…”
celebrando “com grande reverência, em conformidade com as rubricas; isto torna
visível a riqueza espiritual e a profundidade teológica deste Missal”.
O “bem dos fiéis”
é, pois, o único motivo que pode levar os Párocos a usar o Missal de 1962, pelo
que um Pároco não pode impor à Paróquia o Missal de 1962 apenas motivado pela
sua perspectiva pessoal.
O “bem dos fiéis”
supõe discernimento: quantos são os fiéis, quais os motivos que os levam a pedir
essa Liturgia; que formação cristã e litúrgica possuem. De facto o Santo Padre
afirma: “O uso do Missal antigo pressupõe um certo grau de formação litúrgica e
o conhecimento da língua latina; e quer uma quer outro não é muito frequente
encontrá-los”.
Que ninguém se
precipite nem facilite, na certeza de que encontraremos de modo justo, uma
resposta para os fiéis que o pedirem, obedecendo aos critérios enunciados pelo
Santo Padre, que não contemplam motivos como o simples gosto pelo antigo, o ser
diferente, ou a forma de reagir a imperfeições na forma actual de celebrar a
Liturgia.
3. Um outro
objectivo do Santo Padre é salvaguardar a unidade da Igreja. “Trata-se de
chegar a uma reconciliação interna no seio da Igreja”[1].
Na história da
Igreja, mais do que uma vez, as grandes reformas originaram divisões com grupos
de cristãos que não as aceitaram. Foi o caso dos “velhos católicos”, a seguir
ao Concílio Vaticano I, e o do cisma de Mons. Lefebvre, a seguir ao Concílio
Vaticano II. Bento XVI confessa que a primeira abertura ao uso do Missal de
1962, feita por João Paulo II no “Motu Proprio” Ecclesia Dei, foi motivada pela
crise lefebriana e dirigia-se à Fraternidade S. Pio X. O seu “Motu Proprio”
dirige-se não apenas aos seguidores de Mons. Lefebvre, mas a outros cristãos,
mesmo jovens que, pensa o Santo Padre, se sentem atraídos por essa Liturgia. O
horizonte de análise do Santo Padre é a Igreja toda.
Mas esta
preocupação por salvaguardar a unidade da Igreja tem, nos dois documentos do
Papa, outras concretizações a que devemos dar grande relevo pastoral: antes de
mais, o Missal de Paulo VI é a forma normal, para toda a Igreja, de celebrar a
Liturgia. Diz o Santo Padre que, “obviamente, para viver em plena comunhão,
também os sacerdotes das Comunidades aderentes ao uso antigo não podem, em
linha de princípio, excluir a celebração segundo os novos livros. De facto, não
seria coerente com o reconhecimento do valor e da santidade do novo rito a
exclusão total do mesmo”; por outro lado, quando o Pároco acha que deve acolher
o desejo de um grupo de fiéis da sua Paróquia de celebrar pelo Missal de 1962,
“tenha em conta que o bem destes fiéis seja harmonicamente coordenado com o bem
pastoral de toda a Paróquia, sob orientação do Bispo nos termos do c. 392,
evitando divisões e promovendo a unidade de toda a Igreja” (art.º 5 §1 do Motu
Proprio). Isto quer dizer que tem de se avaliar o significado dessa abertura na
harmonia de toda a comunidade.
Papel dos
Sacerdotes na aplicação destas Normas
4. Porque é o
sacerdote quem preside à Eucaristia e aos Sacramentos, o bom discernimento
pastoral dos sacerdotes é muito importante para uma aplicação positiva e
equilibrada destas Normas.
Como já ficou dito,
o sacerdote não deve pôr o acento no seu possível gosto pessoal pela Liturgia
anterior à Reforma Litúrgica, mas no bem dos fiéis e de toda a comunidade a que
preside. O seu gosto pessoal só poderá ter lugar na missa privada, “sine
populo” (art.º 2º). Estas celebrações não podem ser aquelas que são anunciadas
ao Povo de Deus, como programa normal da Paróquia. Essas “missas privadas” não
devem ser anunciadas. A possibilidade de outros fiéis assistirem a elas, como
está previsto no art.º 4º do “Motu Proprio”, não pode entender-se como
divulgação pública das mesmas.
Quanto às celebrações
públicas para os fiéis que as pedirem, dada a não premência do fenómeno entre
nós, que ninguém se precipite a conceder essas celebrações, sem um
discernimento prévio, de preferência feito em presbitério e em diálogo com o
Bispo.
Estejam os Párocos
particularmente atentos para se certificarem que os sacerdotes que se
apresentam para celebrar segundo o rito antigo, mesmo na missa “sine populo”,
são idóneos e não impedidos pelo Direito (cf. Art.º 5º §4).
5. Os Párocos devem
cuidar, particularmente, da qualidade e profundidade litúrgica dessas
celebrações. O rito antigo, já muito distante da prática da Igreja, se não é
celebrado com dignidade litúrgica, pode transformar-se em elemento desagregador
do crescimento das comunidades. Neste aspecto tenham-se em conta, sobretudo os
seguintes pontos:
5.1. O uso da
língua latina. É claro na Carta do Santo Padre aos Bispos que o seu uso supõe o
conhecimento da língua latina. Infelizmente muitos sacerdotes da nossa Diocese
já não sabem o latim. Esses sacerdotes devem considerar-se não idóneos para
presidir à Missa segundo o Missal de 1962. Se as circunstâncias pastorais o
aconselharem, devem procurar-se sacerdotes que o possam fazer dignamente.
5.2. A música. Os
textos do Missal de 1962 estão musicados em gregoriano. A possibilidade
de os cantar, com o mínimo de qualidade, deve ser condição para permitir missas
comunitárias nesse rito.
5.3. O vernáculo.
As leituras em português supõem traduções aprovadas pela Santa Sé (cf. Art.º
6º).
5.4. Os espaços
sagrados. Os nossos templos estão orientados para a celebração da Missa segundo
o Missal de Paulo VI. Fica proibida qualquer tentativa de alterações dos
espaços, sobretudo do altar e do presbitério, por causa da possibilidade de
celebrar o ritual de 1962, que aliás já previa a celebração “versus populum”.
Princípios
basilares a ter em conta.
6. Os textos
litúrgicos emanados da Reforma Litúrgica constituem a Liturgia normal da Igreja
para todos. O uso de textos de antes da Reforma Litúrgica, é excepcional,
motivado pelo “bem dos fiéis”, a discernir e analisar ponderadamente.
7. As celebrações,
segundo esse rito, devem ser durante a semana. Nos Domingos e dias festivos,
celebra-se a Liturgia normal. O Santo Padre abre a hipótese, no caso dum grupo
significativo de fiéis o aconselhar, de uma das celebrações paroquiais nos
Domingos e dias festivos seguir o Missal de 1962. Na nossa Diocese, peço aos
Párocos que, por enquanto, não permitam essas celebrações dominicais, antes de
uma análise profunda da situação. Se chegarmos à conclusão que o “bem dos
fiéis” o exige, encontraremos, em conjunto, formas de lhes garantir, ao Domingo
e dias festivos, celebrações de grande qualidade segundo a Liturgia antiga.
8. Estejamos
vigilantes para que esta abertura concedida pelo Santo Padre, tendo em conta o
bem de toda a Igreja, não se transforme numa campanha em favor da Liturgia
antiga. Isso seria contra a Reforma Litúrgica e todo o espírito do Concílio
Vaticano II, e ignoraria o carácter extraordinário, claramente afirmado pelo
Santo Padre, do uso do Missal de 1962.
9. Procuremos todos
celebrar a Liturgia com qualidade, unção e sentido do Sagrado. Estas qualidades
que aparecem a justificar os que procuram a Liturgia antiga, são aliás valores
da Reforma Litúrgica, pois toda ela é expressão, em assembleia orante, da fé da
Igreja.
Conclusão
10. Assino esta
carta com data de 14 de Setembro, no dia em que entra em vigor a Carta
Apostólica do Santo Padre “Summorum Pontificum Cura”. Ela é a expressão da
nossa comunhão obediente com o Santo Padre, mas também o assumir das nossas
responsabilidades pastorais, como Pastor desta Igreja de Lisboa.
Lisboa,
14 de Setembro de 2007, Festa da Exaltação da Santa Cruz
D.
José Policarpo, Cardeal-Patriarca
Nenhum comentário:
Postar um comentário