São Paulo (14)
A doutrina da justificação: da fé às obras
Queridos irmãos e
irmãs!
Na catequese de quarta-feira passada
falei sobre a questão de como o homem se torna justo diante de Deus. Seguindo
São Paulo, vimos que o homem não está em condições de se tornar
"justo" com as suas próprias ações, mas só pode realmente tornar-se
"justo" diante de Deus porque Deus lhe confere a sua
"justiça" unindo-o a Cristo, seu Filho. E o homem obtém esta união
com Cristo através da fé. Neste sentido São Paulo diz-nos: não são as nossas
obras que nos tornam "justos", mas a fé. Contudo, esta fé não é um
pensamento, uma opinião, uma idéia. Esta fé é comunhão com Cristo, que o Senhor
nos doa e por isso se torna vida, conformidade com Ele. Ou, por outras
palavras, a fé, se é verdadeira, se é real, torna-se amor, caridade,
expressa-se na caridade. Uma fé sem caridade, sem este fruto não seria
verdadeira. Seria fé morta.
Encontramos por
conseguinte na última catequese dois níveis: o da irrelevância das nossas ações,
das nossas obras para a consecução da salvação e o da "justificação"
mediante a fé que produz o fruto do Espírito. A confusão destes dois níveis
causou, ao longo dos séculos, não poucos mal-entendidos na cristandade. Neste
contexto é importante que São Paulo na mesma Carta aos Gálatas acentue, por um lado, de modo radical, a
gratuidade da justificação não pelas obras, mas que, ao mesmo tempo, ressalte
também a relação entre a fé e a caridade, entre a fé e as obras: "Em Jesus Cristo nem a
circuncisão nem a incircuncisão têm valor, mas a fé que atua pela
caridade" (Gl 5, 6). Por
conseguinte, existem, por um lado, as "obras da carne" que são
"prostituição, impureza, desonestidade, idolatria..." (Gl 5, 19-21): todas elas são obras
contrárias à fé; por outro lado, a ação do Espírito Santo alimenta a vida
cristã suscitando "amor, alegria, paz, magnanimidade, benevolência,
bondade, fidelidade, mansidão, domínio de si" (Gl 5, 22): são estes os frutos do Espírito que brotam da fé.
No início deste elenco
de virtudes é citada o ágape, o amor, e na conclusão o domínio de si. Na
realidade, o Espírito, que é o Amor do Pai e do Filho, efunde o seu primeiro
dom, o ágape, nos nossos corações (cf. Rm
5, 5); e o ágape, o amor, para se expressar em plenitude exige o domínio de si.
Do amor do Pai e do Filho, que nos alcança e transforma a nossa existência em
profundidade, falei também na minha primeira Encíclica: Deus
caritas est. Os crentes sabem que no amor recíproco se encarna o
amor de Deus e de Cristo, por meio do Espírito. Voltemos à Carta aos Gálatas. Nela São Paulo diz
que, carregando os fardos uns dos outros, os crentes cumprem o mandamento do
amor (cf. Gl 6, 2).
Justificados pelo dom da fé em Cristo, somos chamados a viver no amor de Cristo
pelo próximo, porque é com este critério que seremos julgados, no final da
nossa existência. Na realidade, Paulo repete o que o próprio Jesus tinha dito e
que nos foi reproposto pelo Evangelho do domingo passado, na parábola do Juízo
final. Na Primeira Carta aos
Coríntios, São Paulo difunde-se num famoso elogio do amor. É o chamado
hino à caridade: "Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se
não tiver caridade, sou como bronze que ressoa, ou como o címbalo que tine... A
caridade é paciente, a caridade é benigna, não é invejosa; a caridade não se
ufana, não se ensoberbece, não é inconveniente, não procura o seu
interesse..." (1 Cor 13,
1.4.5). O amor cristão é muito exigente porque brota do amor total de Cristo
por nós: aquele amor que nos reclama, acolhe, abraça, ampara, até nos
atormentar, porque obriga cada um a não viver mais para si mesmo, fechado no
próprio egoísmo, mas para "Aquele que morreu e ressuscitou por nós"
(cf. 2 Cor 5, 15). O amor de
Cristo faz-nos ser n'Ele aquela criatura nova (cf. 2 Cor 5, 17) que começa a fazer parte do seu Corpo místico que é
a Igreja.
Vista nesta perspectiva,
a centralidade da justificação sem obras, objeto primário da pregação de Paulo,
não entra em contradição com a fé ativa no amor; aliás, exige que a nossa mesma
fé se exprima numa vida segundo o Espírito. Com freqüência viu-se uma infundada
oposição entre a teologia de São Paulo e a de São Tiago, que na sua Carta escreve:
"Assim como o corpo sem a alma é morto, assim também a fé sem obras é
morta" (2, 26). Na realidade, enquanto Paulo está antes de tudo preocupado
em mostrar que a fé em Cristo é necessária e suficiente, Tiago realça as
relações conseqüenciais entre a fé e as obras (cf. Tg 2, 2-4). Portanto quer para Paulo quer para Tiago a fé ativa
no amor confirma o dom gratuito da justificação em Cristo. A salvação,
recebida em Cristo, tem necessidade de ser constituída e testemunhada "com
respeito e temor. De fato, é Deus quem suscita em vós o valor e as obras
segundo o seu desígnio de amor. Fazei tudo sem murmurar e sem hesitar...
mantendo firme a palavra de vida", dirá ainda São Paulo aos cristãos de
Filipos (cf. Fl 2, 12-14.16).
Muitas vezes somos
levados a cair nos mesmos mal-entendidos que caracterizaram a comunidade de
Corinto: aqueles cristãos pensavam que, tendo sido justificados gratuitamente
em Cristo pela fé, "tudo lhes fosse lícito". E pensavam, e muitas
vezes parece que o pensam também os cristãos de hoje, que é lícito criar
divisões na Igreja, Corpo de Cristo, celebrar a Eucaristia sem se preocupar com
os irmãos mais necessitados, aspirar aos melhores carismas sem se dar conta que
são membros uns dos outros, e assim por diante. São desastrosas as conseqüências
de uma fé que não encarna no amor, porque se reduz ao arbítrio e ao subjetivismo
mais nocivo para nós e para os irmãos. Ao contrário, seguindo São Paulo,
devemos tomar consciência renovada do fato que, precisamente porque
justificados em Cristo, já não pertencemos a nós mesmos, mas tornamo-nos
templos do Espírito e por isso somos chamados a glorificar Deus no nosso corpo
com toda a nossa existência (cf. 1 Cor
6, 19). Seria desbaratar o valor inestimável da justificação se, comprados a
caro preço pelo sangue de Cristo, não o glorificássemos com o nosso corpo. Na
realidade, é precisamente este o nosso culto "razoável" e ao mesmo
tempo "espiritual", pelo que somos exortados por Paulo a
"oferecer o nosso corpo como sacrifício vivo, santo e agradável a
Deus" (Rm 12, 1). Ao que
se reduziria uma liturgia dirigida apenas ao Senhor, sem se tornar, ao mesmo
tempo, serviço pelos irmãos, uma fé que não se expressasse na caridade? E o
Apóstolo coloca com freqüência as suas comunidades face ao juízo final, por
ocasião do qual "todos havemos de comparecer perante o tribunal de Cristo,
para que cada um receba o que mereceu, conforme o bem ou o mal que tiver feito,
enquanto estava no corpo" (2 Cor
5, 10; cf. também Rm 2, 16). E
este pensamento do Juízo deve iluminar-nos na nossa vida de todos os dias.
Se a ética que Paulo
propõe não decai em formas de moralismo e se demonstra atual para nós, é
porque, todas as vezes, recomeça sempre da relação pessoal e comunitária com
Cristo, para se imbuir na vida segundo o Espírito. Isto é essencial: a ética
cristã não nasce de um sistema de mandamentos, mas é conseqüência da nossa
amizade com Cristo. Esta amizade influencia a vida: se é verdadeira encarna-se
e realiza-se no amor ao próximo. Por isso, qualquer decadência ética não se
limita à esfera individual, mas é ao mesmo tempo desvalorização da fé pessoal e
comunitária: dela deriva e sobre ela incide de modo determinante. Deixemo-nos
portanto alcançar pela reconciliação, que Deus nos deu em Cristo, pelo amor
"louco" de Deus por nós: nada e ninguém jamais nos poderá separar do
seu amor (cf. Rm 8, 39).
Vivamos nesta certeza. É esta certeza que nos dá a força para viver
concretamente a fé que realiza o amor.
PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Quarta-feira, 26 de
Novembro de 2008
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