São Paulo (18):
A visão teológica das Cartas aos Colossenses e aos Efésios
Queridos irmãos e
irmãs!
Entre as Cartas do
epistolário paulino, há duas, aos Colossenses e aos Efésios, que em certa
medida se podem considerar gêmeas. De fato, as duas contêm expressões que se
encontram só nelas, e foi calculado que mais de um terço das palavras da Carta aos Colossenses se encontra
também na Carta aos Efésios.
Por exemplo, enquanto em Colossenses
se lê literalmente o convite: "admoestando-vos... com salmos, hinos e cânticos
espirituais; cantando... louvores a Deus em vossos corações" (Cl 3, 16), em Efésios recomenda-se igualmente que
se recite "entre vós salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e
louvando ao Senhor em vossos corações" (Ef 5, 19). Poderíamos meditar sobre estas palavras: o coração
deve cantar, e assim também a voz, com salmos e hinos para entrar na tradição
da oração de toda a Igreja do Antigo e do Novo Testamento; aprendemos assim a
estar juntamente conosco e entre nós, e com Deus. Além disso, nas duas Cartas encontra-se um chamado
"código doméstico", ausente das outras Cartas paulinas, ou seja, uma
série de recomendações dirigidas a maridos e esposas, a pais e filhos, a
senhores e escravos (cf. respectivamente Cl
3,18-4,1 e Ef 5,22-6,9).
É ainda mais importante
verificar que só nestas duas Cartas
é confirmado o título de "cabeça", kefalé, dado a Jesus Cristo. E este título é empregue num nível
duplo. Num primeiro sentido, Cristo é entendido como cabeça da Igreja (cf. Cl
2, 18-19 e Ef 4, 15-16). Isto
tem dois significados: o primeiro, que ele é o governante, o dirigente, o
responsável que guia a comunidade cristã como seu chefe e Senhor (cf. Cl 1, 18): "Ele é a cabeça do
Corpo, a Igreja"; e depois o outro significado é que ele é como a cabeça
que alimenta e une todos os membros do corpo sobre o qual foi elegido (de
facto, segundo Cl 2, 19) é
preciso "manter-se vinculado à Cabeça, pela qual todo o corpo é alimentado
e unido"): ou seja, não é só alguém que dá ordens, mas alguém que
organicamente está unido a nós, do qual vem também a força de agir de modo
recto.
Nos dois casos, a Igreja
é considerada submetida a Cristo, quer para seguir a sua orientação superior os
mandamentos quer para receber todas as influências vitais que d'Ele promanam.
Os seus ensinamentos não são palavras, mandamentos, mas forças vitais que
provêm d'Ele e nos ajudam.
Esta idéia é
desenvolvida de modo particular em Efésios, onde até os ministérios da Igreja,
em vez de serem reconduzidos ao Espírito Santo (como 1 Cor 12) são conferidos por Cristo ressuscitado: foi Ele quem
"estabeleceu alguns como apóstolos, outros como profetas, outros como
evangelistas, outros como pastores e mestres" (4, 11). E é d'Ele que
"o corpo inteiro, coordenado e unido, por meio de todas as junturas, opera
o seu crescimento orgânico... a fim de se edificar na caridade" (4, 16).
De fato, Cristo dedicou-se totalmente a "apresentar a Si mesmo como Igreja
gloriosa sem mancha nem ruga, nem qualquer coisa semelhante, mas santa e
imaculada" (Ef 5, 27). Com
isto diz-se que a força com a qual constrói a Igreja, a guia e lhe dá também a
justa orientação, é precisamente o seu amor.
Portanto, o primeiro
significado é Cristo Cabeça da Igreja: quer no que se refere à condução, quer,
sobretudo, no que diz respeito à inspiração e revitalização pelo seu amor.
Depois, num segundo sentido, Cristo é considerado não só como cabeça da Igreja,
mas como cabeça dos poderes celestes e de toda a criação. Assim em Colossenses lemos que Cristo
"despojou os Principados e as Potestades, exibiu-os publicamente,
triunfando deles pela Cruz" (2, 15). Analogamente em Efésios encontramos escrito que, com
a ressurreição, Deus colocou Cristo "acima de todo o Principado,
Potestade, Virtude e Dominação e acima de todo o nome que se evoca, não só neste
mundo como também no futuro" (1, 21). Com estas palavras as duas Cartas entregam-nos uma mensagem
altamente positiva e fecunda. É esta: Cristo não teme qualquer eventual
concorrente, porque é superior a qualquer tipo de poder que presumisse humilhar
o homem. Só Ele "nos amou e por nós se entregou" (Ef 5, 2). Por isso, se estamos
unidos a Cristo, não devemos temer inimigo algum nem qualquer adversidade; mas
isto significa portanto que devemos manter-nos muito firmes a Ele, sem abrandar
a presa!
Para o mundo pagão, que
acreditava num mundo cheio de espíritos, em grande parte perigosos e dos quais
era preciso defender-se, aparecia como uma verdadeira libertação o anúncio de
que Cristo era o único vencedor e que quem estava com Cristo ninguém devia temer.
O mesmo é válido também para o paganismo de hoje, porque os atuais seguidores
de semelhantes ideologias vêem o mundo cheio de poderes perigosos. A estes é
preciso anunciar que Cristo é o vencedor, de modo que quem está com Cristo,
quem permanece unido a Ele, não deve temer nada nem ninguém. Parece-me que isto
é importante também para nós, que devemos aprender a enfrentar todos os
receios, porque Ele está acima de qualquer dominação, é o verdadeiro Senhor do
mundo.
Até a criação inteira
Lhe está submetida, e para Ele converge como para a própria cabeça. São
célebres as palavras da Carta aos
Efésios, que fala do projecto de Deus de "recapitular em Cristo
todas as coisas, as do céu e as da terra" (1, 10). Analogamente na Carta aos Colossenses lê-se que
"por meio d'Ele todas as coisas foram criadas, as do céu e as da terra, as
visíveis e as invisíveis" (1, 16) e que pacificou "pelo sangue da Sua
Cruz, tanto as da terra como as dos Céus" (1, 20). Portanto não há, por um
lado, o grande mundo material e, por outro, esta pequena realidade da história
da nossa terra, o mundo das pessoas: tudo é um em Cristo. Ele é a cabeça
da criação; também o cosmos foi por Ele criado, criado para nós porque estamos
unidos a Ele. É uma visão racional e personalista do universo. E diria que não
era possível conceber uma visão mais universalista do que esta, e ela convém só
a Cristo ressuscitado. Cristo é o Pantokrátor,
ao qual estão submetidas todas as coisas: o pensamento dirige-se precisamente
para Cristo Pantocrator, que enche a bacia absidal das igrejas bizantinas, por
vezes representado sobre um arco-íris para indicar a sua equiparação ao próprio
Deus, a cuja direita está sentado (cf. Ef
1, 20; Cl 3, 1), e portanto
também a sua inigualável função de condutor dos destinos humanos.
Uma visão como esta só é
concebível da parte da Igreja, não no sentido de que ela pretenda indevidamente
apropriar-se daquilo a que não tem direito, mas num sentido duplo: seja porque
a Igreja reconhece que contudo Cristo é maior do que ela, dado que pelo seu
senhorio se alarga também para além dos seus confins, e seja porque só a Igreja
é qualificada como Corpo de Cristo, e não a criação. Tudo isto significa que
devemos considerar positivamente as realidades terrenas, porque Cristo as
recapitula em si, e de igual modo devemos viver em plenitude a nossa específica
identidade eclesial, que é a mais homogênea com a identidade do próprio Cristo.
Há depois também um
conceito especial, que é típico destas duas Cartas, que é o do "mistério". Uma vez fala-se do "mistério
da vontade" de Deus (Ef 1,
9) e outras vezes do "mistério de Cristo" (Ef 3, 4; Cl 4,
3) ou até do "mistério de Deus, que é Cristo, no qual estão escondidos os
tesouros da sabedoria e do conhecimento" (cf. Cl 3, 2-3). Isto significa o imperscrutável desígnio divino
sobre o destino do homem, dos povos e do mundo. Com esta linguagem as duas
Epístolas dizem-nos que é em Cristo que se encontra o cumprimento deste
mistério. Se estamos com Cristo, mesmo se não podemos intelectualmente
compreender tudo, sabemos que estamos no núcleo do "mistério" e no
caminho da verdade. É Ele na sua totalidade, e não só num aspecto da sua pessoa
ou num momento da sua existência, que traz em si a plenitude do insondável
plano divino de salvação. N'Ele assume forma aquela a que se chama "a
multiforme sabedoria de Deus (Ef
3, 10), porque n'Ele "habita corporalmente toda a plenitude divina" (Cl 2, 9). Portanto, de agora em
diante, não é possível pensar e adorar o beneplácito de Deus, a sua soberana
disposição, sem nos conformarmos pessoalmente com o próprio Cristo, no qual
aquele "mistério" se encarna e pode ser visivelmente sentido.
Chega-se assim a contemplar a "insondável riqueza de Cristo" (Ef 3, 8), que supera qualquer
compreensão humana. Não que Deus não tenha deixado sinais da sua passagem,
porque é o próprio Cristo a pegada de Deus, a sua extrema marca; mas
apercebemo-nos de "qual é a largura, o comprimento, a altura e a
profundidade" deste mistério "que excede toda a ciência" (Ef 3, 18-19). As categorias
intelectuais sozinhas manifestam-se insuficientes e, reconhecendo que muitas
coisas superam as nossas capacidades racionais, devemo-nos confiar à
contemplação humilde e jubilosa não só da mente mas também do coração. De
resto, os Padres da Igreja dizem-nos que o amor compreende mais do que só a
razão.
Deve ser dita uma última
palavra sobre o conceito, já mencionado, relativo à Igreja como parceira
esponsal de Cristo. Na segunda Carta
aos Coríntios o apóstolo Paulo tinha comparado a comunidade cristã com
uma noiva, escrevendo assim: "Sinto por vós um santo ciúme, por vos ter
desposado com um único esposo, como virgem pura oferecida a Cristo" (2 Cor 11, 2). A Carta aos Efésios desenvolve esta
imagem, esclarecendo que a Igreja não é só uma esposa prometida, mas é a esposa
real de Cristo. Ele, por assim dizer, conquistou-a, e fê-lo ao preço da sua
vida: como diz o texto, "entregou-se a Si mesmo por ela" (Ef 5, 25). Qual demonstração de amor
pode ser maior do que esta? Mais ainda, ele está preocupado com a sua beleza:
não só com a beleza adquirida no batismo, mas também com a que deve crescer
todos os dias graças a uma vida irrepreensível "sem mancha nem ruga",
no seu comportamento moral (cf. Ef
5, 26-27). Daqui à comum experiência do matrimônio cristão, o passo é breve;
aliás, nem sequer é bem claro para o autor da Carta o ponto de referência inicial: se é a relação
Cristo-Igreja, em cuja luz considerar a união do homem e da mulher, ou se o fato
experiencial da união conjugal, em cuja luz considerar a relação entre Cristo e
a Igreja. Mas ambos os aspectos se esclarecem reciprocamente: aprendemos o que
é o matrimônio à luz da comunhão de Cristo e da Igreja, aprendemos como Cristo
se une a nós pensando no mistério do matrimônio. Contudo, a nossa Carta situa-se quase a meio caminho
entre o profeta Oséias, que indicava a relação entre Deus e o seu povo nos
termos de núpcias já realizadas (cf. Os
2, 4.16.21), e o Vidente do Apocalipse, que perspectivará o encontro
escatológico entre a Igreja e o Cordeiro como umas núpcias jubilosas e
indefectíveis (cf. Ap 19, 7-9;
21, 9).
Haveria ainda muito a
dizer, mas parece-me que, do que foi exposto, já se pode compreender que estas
duas Cartas são uma grande catequese, da qual podemos aprender não só como ser
bons cristãos, mas também como tornar-nos realmente homens. Se começamos a
compreender que a criação é a marca de Cristo, aprendemos a nossa reta relação
com a criação, com todos os problemas da conservação do cosmos. Aprendemos a
vê-lo com a razão, mas com uma razão movida pelo amor, e com a humildade e o
respeito que permitem agir de modo reto. E se pensamos que a Igreja é o Corpo
de Cristo, que Cristo se entregou a Si mesmo por ela, aprendemos a viver com
Cristo o amor recíproco, o amor que nos une a Deus e que nos mostra no outro a
imagem do próprio Cristo. Peçamos ao Senhor que nos ajude a meditar bem a
Sagrada Escritura, a sua Palavra, e assim a aprender realmente a viver bem.
PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 14 de Janeiro de 2009
Quarta-feira, 14 de Janeiro de 2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário