São Paulo (7):
A relação com o Jesus histórico
Queridos irmãos e
irmãs!
Nas últimas catequeses
sobre São Paulo falei do seu encontro com Cristo ressuscitado, que mudou
profundamente a sua vida, e depois da sua relação com os doze Apóstolos
chamados por Jesus particularmente com Tiago, Cefas e João e da sua relação com
a Igreja de Jerusalém. Permanece agora a questão sobre o que São Paulo soube do
Jesus terreno, da sua vida, dos seus ensinamentos, da sua paixão. Antes de
entrar nesta questão, pode ser útil ter presente que o próprio São Paulo
distingue dois modos de conhecer Jesus e mais em geral dois modos de conhecer
uma pessoa. Escreve na Segunda Carta
aos Coríntios: "De modo que, desde agora em diante, a ninguém
conhecemos segundo a carne. Ainda que tenhamos conhecido a Cristo desse modo,
agora já não O conhecemos assim" (5, 16). Conhecer "segundo a
carne", de modo carnal, significa conhecer de modo apenas exterior, com
critérios superficiais: pode-se ter visto uma pessoa diversas vezes, conhecer
portanto as suas feições e os diversos pormenores do seu comportamento: como
fala, como se move, etc. Contudo, mesmo conhecendo alguém desta forma, não o
conhecemos realmente, não se conhece o núcleo da pessoa. Só com o coração se
conhece verdadeiramente uma pessoa. De fato, os fariseus e os saduceus
conheceram Jesus de modo exterior, ouviram o seu ensinamento, conheceram muitos
pormenores acerca dele, mas não O conheceram na sua verdade. Há uma distinção
análoga numa palavra de Jesus. Depois da Transfiguração, Ele pergunta aos
Apóstolos: "Quem dizem as pessoas que Eu sou?" e "Quem dizeis
vós que Eu sou?". O povo conhece-o, mas superficialmente; sabe diversas
coisas acerca d'Ele, mas não O conhece realmente. Ao contrário os Doze, graças
à amizade que chama em causa o coração, compreenderam pelo menos na substância
e começaram a conhecer quem é Jesus. Também hoje existe este modo diverso de
conhecimento: há pessoas doutas que conhecem Jesus nos seus muitos pormenores e
pessoas simples que não conhecem estes pormenores, mas conheceram-no na sua
verdade: "o coração fala ao coração". E Paulo quer dizer que conhece
essencialmente Jesus assim, com o coração, e que conhece deste modo
fundamentalmente a pessoa na sua verdade; e depois, num segundo momento,
conhece os seus pormenores.
Dito isto, permanece,
contudo a questão: o que soube São Paulo da vida concreta, das palavras, da
paixão, dos milagres de Jesus? Parece certo que não O encontrou durante a sua
vida terrena. Através dos Apóstolos e da Igreja nascente conheceu certamente
também os pormenores sobre a vida terrena de Jesus. Nas suas Cartas podemos
encontrar três formas de referência ao Jesus pré-pascal. Em primeiro lugar, há
referências explícitas e diretas. Paulo fala da ascendência davídica de Jesus
(cf. Rm 1, 3), conhece a
existência de seus "irmãos" ou consanguíneos (1 Cor 9, 5; Gl 1, 19), conhece a realização da Última Ceia (cf. 1 Cor 11, 23), conhece outras
palavras de Jesus, por exemplo sobre a indissolubilidade do matrimônio (cf. 1 Cor 7, 10 com Mc 10, 11-12), sobre a necessidade
que quem anuncia o Evangelho seja mantido pela comunidade porque o operário é
digno do seu salário (cf. 1 Cor
9, 14 com Lc 10, 7); Paulo
conhece as palavras pronunciadas por Jesus na Últimas Ceia (cf. 1 Cor 11, 24-25 com Lc 22, 19-20) e conhece também a cruz
de Jesus. Estas são referências diretas a palavras e fatos da vida de Jesus.
Em segundo lugar,
podemos entrever nalgumas frases das Cartas paulinas várias alusões à tradição
confirmada nos Evangelhos sinópticos. Por exemplo, as palavras que lemos na
primeira Carta aos Tessalonicenses,
segundo as quais "o dia do Senhor virá como um ladrão de noite" (5,
2), não se explicariam com uma referência às profecias veterotestamentárias,
porque a comparação do ladrão noturno se encontra só nos Evangelhos de Mateus e
de Lucas, portanto é tirada precisamente da tradição sinóptica. Assim, quando
lemos: "Deus escolheu o que segundo o mundo é louco..." (1 Cor 1, 27-28), ouvimos o eco fiel
do ensinamento de Jesus sobre os simples e os pobres (cf. Mt 5, 3; 11, 25; 19, 30). Há depois
as palavras pronunciadas por Jesus no júbilo messiânico: "Bendigo-Te, ó
Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos
entendidos e as revelaste aos pequeninos". Paulo sabe é a sua experiência
missionária quanto são verdadeiras estas palavras, isto é, que precisamente os
simples têm o coração aberto ao conhecimento de Jesus. Também o realce sobre a
obediência de Jesus "até à morte", que se lê em Fl 2, 8 não pode deixar de recordar a
total disponibilidade do Jesus terreno a realizar a vontade de seu Pai (cf. Mc 3, 35; Jo 4, 34). Portanto Paulo conhece a paixão de Jesus, a sua cruz,
o modo como Ele viveu os últimos momentos da sua vida. A cruz de Jesus e a
tradição sobre este acontecimento da cruz está no centro do Querigma paulino.
Outro pilar da vida de Jesus conhecido por São Paulo é o Sermão da Montanha, do qual cita
alguns elementos quase à letra, quando escreve aos Romanos: "Amai-vos uns
aos outros... Bendizei aqueles que vos perseguem... Vivei em paz com todos...
Vence o mal com o bem...". Portanto, nas suas Cartas há um reflexo fiel do Sermão da Montanha (cf. Mt
5-7).
Por fim, é possível ver
um terceiro modo de presença das palavras de Jesus nas Cartas de Paulo: é
quando ele realiza uma forma de transposição da tradição pré-pascal para a
situação depois da Páscoa. Um caso típico é o tema do Reino de Deus. Ele está
certamente no centro da pregação do Jesus histórico (cf. Mt 3, 2; Mc 1, 15; Lc 4,
43). Em Paulo pode-se ver uma transposição desta temática, porque depois da ressurreição
é evidente que Jesus em pessoa, o Ressuscitado, é o Reino de Deus. Portanto, o
Reino chega aonde está a chegar Jesus. E assim necessariamente o tema do Reino
de Deus, no qual estava antecipado o mistério de Jesus, transforma-se em Cristologia.
Contudo, as mesmas disposições exigidas por Jesus para entrar no Reino de Deus
são válidas exatamente para Paulo em relação à justificação mediante a fé: quer
a entrada no Reino quer a justificação exigem uma atitude de grande humildade e
disponibilidade, livre de presunções, para acolher a graça de Deus. Por
exemplo, a parábola do fariseu e do publicano (cf. Lc 18, 9-14) oferece um ensinamento igual ao de Paulo, quando
insiste sobre a exclusão obrigatória de qualquer vanglória em relação a Deus.
Também as frases de Jesus sobre os publicanos e as prostitutas, mais
disponíveis que os fariseus a acolher o Evangelho (cf. Mt 21, 31; Lc 7,
36-50), e as suas opções de partilha da mesa com eles (cf. Mt 9, 10-13; Lc 15, 1-2) encontram plena correspondência na doutrina de Paulo
sobre o amor misericordioso de Deus pelos pecadores (cf. Rm 5, 8-10; e também Ef 2, 3-5). Assim o tema do Reino de
Deus é reproposto de forma nova, mas sempre em plena fidelidade à tradição do
Jesus histórico.
Outro exemplo de transformação fiel do núcleo
doutrinal indicado por Jesus encontra-se nos "títulos" que a Ele se
referem. Antes da Páscoa ele mesmo se qualifica como Filho do homem; depois da
Páscoa torna-se evidente que o Filho do homem é também o Filho de Deus.
Portanto o título preferido por Paulo para qualificar Jesus é Kýrios, "Senhor" (cf. Fl 2, 9-11), que indica a divindade
de Jesus. O Senhor Jesus, com este título, sobressai na plena luz da
ressurreição. No Horto das Oliveiras, no momento da extrema agonia de Jesus
(cf. Mc 14, 36), os discípulos
antes de adormecerem tinham ouvido como Ele falava com o Pai e como O chamava
"Abbá Pai". É uma
palavra muito familiar equivalente ao nosso "papá", usada só por
crianças em comunhão com o seu pai. Até àquele momento era impossível que um judeu
usasse uma semelhante palavra para se dirigir a Deus; mas Jesus, sendo
verdadeiro filho, naquele momento de intimidade fala assim e diz: "Abbá, Pai". Nas Cartas de São
Paulo aos Romanos e aos Gálatas surpreendentemente esta palavra "Abbá", que expressa a
exclusividade da filiação de Jesus, sai da boca dos batizados (cf. Rm 8, 15; Gl 4, 6), porque receberam o "Espírito do Filho" e
agora trazem consigo este Espírito e podem falar como Jesus e com Jesus como
verdadeiros filhos ao seu Pai, podem dizer "Abbá" porque se tornaram filhos no Filho.
E finalmente gostaria de
mencionar a dimensão salvífica da morte de Jesus, como encontramos na frase
evangélica segundo a qual "o Filho do homem não veio para ser servido, mas
para servir e dar a vida em resgate por muitos" (Mc 10, 45; Mt
20, 28). O reflexo fiel desta palavra de Jesus sobressai na doutrina paulina
sobre a morte de Jesus como resgate (cf. 1
Cor 6, 20), como redenção (cf. Rm
3, 24), como libertação (cf. Gl
5, 1) e como reconciliação (cf. Rm
5, 10; 2 Cor 5, 18-20). Está
aqui o centro da teologia paulina, que se baseia nesta palavra de Jesus.
Em conclusão, São Paulo
não pensa em Jesus na veste de historiador, como numa pessoa do passado.
Conhece certamente a grande tradição sobre a sua vida, as palavras, a morte e a
ressurreição de Jesus, mas não trata tudo isto como coisas do passado;
propõe-no como realidade do Jesus vivo. As palavras e as ações de Jesus para
Paulo não pertencem ao tempo histórico, ao passado. Jesus vive e fala agora conosco
e vive para nós. É este o verdadeiro modo de conhecer Jesus e de acolher a
tradição acerca dele. Também nós devemos aprender a conhecer Jesus não segundo
a carne, como uma pessoa do passado, mas como nosso Senhor e Irmão, que hoje
está conosco e nos mostra como viver e como morrer.
PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Quarta-feira, 8 de
Outubro de 2008
Nenhum comentário:
Postar um comentário