São Paulo (20):
O martírio e a herança de São Paulo
Caros irmãos e irmãs
A série das nossas
catequeses sobre a figura de São Paulo chegou ao fim: hoje, queremos falar do
final da sua vida terrena. A antiga tradição cristã testemunha unanimemente que
a morte de Paulo teve lugar como conseqüência do martírio padecido aqui em Roma. Os escritos do Novo
Testamento não se referem a este fato. Os Atos dos Apóstolos terminam a sua narração mencionando a
condição de aprisionamento do Apóstolo, que, todavia podia acolher todos
aqueles que iam ter com ele (cf. Act
28, 30-31). Só na segunda Carta a
Timóteo encontramos estas suas palavras previdentes: "Quanto a mim,
estou pronto para verter o meu sangue em libação; e o tempo da minha partida já
se aproxima" (2 Tm 4, 6;
cf. Fl 2, 17). Aqui são usadas duas
imagens, a cultual do sacrifício, já utilizada na Carta aos Filipenses,
interpretando o martírio como parte do sacrifício de Cristo, e a marítima, de
desatar as amarras: duas imagens que, juntas, aludem discretamente ao
acontecimento da morte, e de uma morte cruenta.
O primeiro testemunho
explícito sobre a morte de São Paulo vem-nos da segunda metade dos anos 90 do
século I, portanto pouco mais de três décadas após a sua morte efetiva.
Trata-se precisamente da Carta que a Igreja de Roma, com o seu Bispo Clemente
I, escreveu à Igreja de Corinto. Naquele texto epistolar convida-se a ter
diante dos olhos o exemplo dos Apóstolos e, imediatamente depois de ter
mencionado o martírio de Pedro, lê-se assim: "Pelo ciúme e a discórdia,
Paulo foi obrigado a mostrar-nos como se alcança o prêmio da paciência.
Aprisionado sete vezes, exilado, lapidado, foi o arauto de Cristo no Oriente e
no Ocidente, e pela sua fé alcançou para si uma glória pura. Depois de ter
anunciado a justiça ao mundo inteiro, e após ter chegado até à extremidade do
Ocidente, padeceu o martírio diante dos governantes; assim, partiu deste mundo
e chegou ao lugar santo, tornando-se deste modo o maior modelo de
paciência" (1 Clem 5, 2).
A paciência de que fala é expressão da sua comunhão na paixão de Cristo, da
generosidade e constância com as quais aceitou um longo caminho de sofrimento,
a ponto de poder dizer: "Trago no meu corpo as marcas do Senhor
Jesus" (Gl 6, 17). Ouvimos
no texto de São Clemente que Paulo teria chegado até à "extremidade do Ocidente".
Debate-se se esta é uma referência a uma viagem à Espanha, que São Paulo teria
realizado. Não existe certeza acerca disto, mas é verdade que, na sua Carta aos
Romanos, São Paulo manifesta a sua intenção de ir à Espanha (cf. Rm 15, 24).
Aliás, é muito
interessante na Carta de Clemente a sucessão dos dois nomes de Pedro e de
Paulo, embora eles sejam invertidos no testemunho de Eusébio de Cesareia, do
século iv que, falando do imperador Nero, escreverá: "Durante o seu reino,
Paulo foi decapitado precisamente em Roma, e aí Pedro foi crucificado. A
narração é confirmada pelo nome de Pedro e de Paulo, que ainda hoje está
conservado nos seus sepulcros nessa cidade" (Hist. Eccl., 2, 25, 5). Depois Eusébio continua, citando a
declaração precedente de um presbítero romano de nome Gaio, que remonta aos
primórdios do século II: "Posso mostrar-te os troféus dos Apóstolos: se
fores ao Vaticano, ou à Via Ostiense, aí encontrarás os troféus dos fundadores
da Igreja" (Ibid., 2, 25,
6-7). Os "troféus" são os monumentos sepulcrais, e trata-se
precisamente das sepulturas de Pedro e de Paulo que ainda hoje, depois de dois milênios,
nós veneramos nos mesmos lugares: tanto aqui no Vaticano, no que se refere a
São Pedro, como na Basílica de São Paulo fora dos Muros na Via Ostiente, no que
diz respeito ao Apóstolo das Nações.
É interessante relevar
que os dois grandes Apóstolos são mencionados em conjunto. Embora
nenhuma fonte antiga fale de um seu ministério contemporâneo em Roma, a
consciência cristã sucessiva, com base no seu sepultamento comum na capital do
império, associá-los-á também como fundadores da Igreja de Roma. Com efeito, é
assim que se lê em Ireneu de Lião, quase no final do século II, a propósito da
sucessão apostólica nas várias Igrejas: "Dado que seria demasiado longo
enumerar as sucessões de todas as Igrejas, consideraremos a Igreja grandíssima
e antiqüíssima que todos nós conhecemos, a Igreja fundada e estabelecida em
Roma pelos dois gloriosíssimos Apóstolos Pedro e Paulo" (Adv. haer., 3, 3, 2).
Porém, agora deixemos de
lado a figura de Pedro e concentremo-nos na figura de Paulo. O seu martírio é
narrado pela primeira vez pelos Atos de Paulo, escritos por volta do final do
século II. Eles referem que Nero o condenou à morte por decapitação, executada
imediatamente em seguida (cf. 9, 5). A data da morte varia já nas fontes
antigas, que a inserem entre a perseguição desencadeada pelo próprio Nero
depois do incêndio de Roma em Julho de 64 e o último ano do seu reino, ou seja,
68 (cf. Jerônimo, De viris ill.,
5, 8). O cálculo depende muito da cronologia da chegada de Paulo a Roma, um
debate que não podemos abordar aqui. Tradições sucessivas especificarão mais
dois elementos. Um, o mais legendário, é que o martírio teve lugar nas Acquae Salviae na Via Laurentina, com
um tríplice ricochete da cabeça, cada um dos quais causou a saída de um jorro
de água, pelo que o lugar até hoje é chamado das "Três Fontes" (Atos de Pedro e Paulo do Pseudomarcelo,
do século V). O outro, em consonância com o antigo testemunho já mencionado do
presbítero Gaio, é que a sua sepultura teve lugar não só "fora da
cidade... na segunda milha ao longo da Via Ostiense", mas mais
precisamente "na propriedade de Lucina", que era uma matrona cristã (Paixão de Paulo do Psuedoabdia, do
século VI). Aqui, no século IV, o imperador Constantino erigiu uma primeira
igreja, em seguida grandemente ampliada entre os séculos IV e V pelos
imperadores Valentiniano II, Teodósio e Arcádio. Depois do incêndio de 1800, aí
foi erigida a atual Basílica
de São Paulo fora dos Muros.
De qualquer modo, a
figura de São Paulo sobressai muito além da sua vida terrena e da sua morte;
com efeito, ele deixou uma herança espiritual extraordinária. Como verdadeiro
discípulo de Jesus, também ele se tornou sinal de contradição. Enquanto entre
os chamados "ebionitas" uma corrente judaico-cristã era considerado
como apóstata pela lei mosaica, já no livro dos Atos dos Apóstolos nasce uma grande veneração pelo Apóstolo
Paulo. Agora, gostaria de prescindir da literatura apócrifa, como os Atos de Paulo e Tecla e um
epistolário apócrifo entre o Apóstolo Paulo e o filósofo Sêneca. É importante
constatar sobretudo que, depressa, as Cartas de São Paulo entram na liturgia,
onde a estrutura profeta-apóstolo-Evangelho é determinante para a forma da
liturgia da Palavra. Assim, graças a esta "presença" na liturgia da
Igreja, o pensamento do Apóstolo torna-se imediatamente alimento espiritual dos
fiéis de todos os tempos.
É óbvio que os Padres da Igreja e depois todos
os teólogos se alimentaram das Cartas de São Paulo e da sua espiritualidade.
Assim ele permaneceu ao longo dos séculos, até hoje, o verdadeiro mestre e
apóstolo das nações. O primeiro comentário patrístico que chegou até nós sobre
um escrito do Novo Testamento é o do grande teólogo alexandrino Orígenes, que
comenta a Carta de Paulo aos Romanos.
Infelizmente, este comentário só se conservou de forma parcial. Além de ser
comentador das suas Cartas, São
João Crisóstomo escreveu sobre ele sete Panegíricos
memoráveis. Santo Agostinho deverá a ele a passagem decisiva da sua conversão,
e voltará a Paulo durante toda a sua vida. Deste diálogo permanente com o
Apóstolo deriva a sua grande teologia católica, e também para a protestante de
todos os tempos. São Tomás de Aquino deixou-nos um bonito comentário às Cartas paulinas, que representa o
fruto mais maduro da exegese medieval. Uma verdadeira inversão verificou-se no
século XVI, com a Reforma protestante. O momento decisivo na vida de Lutero foi
o chamado "Turmerlebnis"
(1517), em que num instante ele encontrou uma nova interpretação da doutrina
paulina da justificação. Uma interpretação que o libertou dos escrúpulos e dos
anseios da sua vida precedente e lhe deu uma confiança nova e radical na
bondade de Deus que perdoa tudo incondicionalmente. A partir desse momento,
Lutero identificou o legalismo judaico-cristão, condenado pelo Apóstolo, com a
ordem de vida da Igreja católica. Portanto, a Igreja pareceu-lhe como que
expressão da escravidão da lei à qual opôs a liberdade do Evangelho. O Concílio
de Trento, de 1545 a
1563, interpretou de modo profundo a questão da justificação e encontrou na
linha de toda a tradição católica a síntese entre lei e Evangelho, em conformidade
com a mensagem da Sagrada Escritura, lida na sua totalidade e unidade.
O século XIX, recebendo
a melhor herança do Iluminismo, conheceu uma nova revivescência do paulinismo,
agora, sobretudo no plano do trabalho científico, desenvolvido pela interpretação
histórico-crítica da Sagrada Escritura, como depois no século XX surgiu uma
verdadeira e própria difamação de São Paulo. Penso principalmente em Nietsche,
que escarnecia da teologia da humildade de São Paulo, opondo-lhe a sua teologia
do homem forte e poderoso. Porém, prescindamos disto e vejamos a corrente
essencial da nova interpretação científica da Sagrada Escritura e do novo
paulinismo desse século. Aqui foi sublinhado sobretudo como central no
pensamento paulino o conceito de liberdade: nele viu-se o cerne do pensamento
paulino, como de resto Lutero já tinha intuído. Porém, agora o conceito de
liberdade passava a ser reinterpretado no contexto do liberalismo moderno. Além
disso, é salientada vigorosamente a diferenciação entre o anúncio de São Paulo
e o anúncio de Jesus. E São Paulo aparece quase como um novo fundador do
cristianismo. É verdade que em
São Paulo a centralidade do Reino de Deus, determinante para
o anúncio de Jesus, se transforma na centralidade da cristologia, cujo ponto
determinante é o mistério pascal. E do mistério pascal derivam os Sacramentos
do Baptismo e da Eucaristia, como presença permanente deste mistério, a partir
do qual cresce o Corpo de Cristo e se constrói a Igreja. Mas diria, agora sem
entrar em pormenores, que é precisamente na nova centralidade da Cristologia e
do mistério pascal que se realiza o Reino de Deus, tornando-se concreto,
presente e ativo o anúncio autêntico de Jesus. Nas catequeses precedentes vimos
que exatamente esta novidade paulina é a fidelidade mais profunda ao anúncio de
Jesus. No progresso da exegese, sobretudo nos últimos duzentos anos, aumentam
também as convergências entre exegese católica e exegese protestante,
alcançando-se assim um consenso notável precisamente no ponto que esteve da origem
da máxima divergência histórica. Portanto, é uma grande esperança para a causa
do ecumenismo, tão fulcral para o Concílio Vaticano II.
Enfim, gostaria de
mencionar brevemente os vários movimentos religiosos, surgidos na idade moderna
no interior da Igreja católica, que se inspiram no nome de São Paulo. Assim
aconteceu no século XVI, com a "Congregação de São Paulo", chamada
dos Barnabitas; no século XIX, com os "Missionários de São Paulo", ou
Paulinos; e no século XX, com a poliédrica "Família Paulina", fundada
pelo Beato Giacomo Alberione, para não falar do Instituto Secular da
"Companhia de São Paulo". Em síntese, permanece luminosa diante de
nós a figura de um apóstolo e um pensador cristão extremamente fecundo e
profundo, de cuja aproximação cada um pode haurir benefício. Num dos seus
panegíricos, São João Crisóstomo instaurou uma comparação original entre Paulo
e Noé, expressando-se assim: Paulo "não uniu eixos para fabricar uma arca;
pelo contrário, em vez de unir tábuas de madeira, compôs cartas e assim salvou
do meio das ondas não dois, três ou cinco membros da própria família, mas toda
a ecumene que estava prestes a perecer" (Paneg., 1, 5). É precisamente isto que o Apóstolo Paulo ainda e
sempre pode fazer. Portanto, inspirar-se nele, tanto no seu exemplo apostólico
como na sua doutrina, será um estímulo, se não uma garantia, para a
consolidação da identidade cristã de cada um de nós e para o refortalecimento
de toda a Igreja.
PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 4 de Fevereiro de 2009
Quarta-feira, 4 de Fevereiro de 2009
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