São Paulo (8):
A dimensão eclesiológica do pensamento de Paulo
Amados irmãos e
irmãs!
Na catequese de quarta-feira passada
falei sobre o relacionamento de Paulo com o Jesus pré-pascal na sua vida
terrena. A questão era: "O que sabia Paulo da vida de Jesus, das suas
palavras e da sua paixão?". Hoje, gostaria de falar do ensinamento de São
Paulo sobre a Igreja. Devemos começar pela constatação de que esta palavra,
"Chiesa" em italiano assim como em francês "Eglise" e em
espanhol "Iglesia" deriva do grego "ekklēsía"! Ela provém do Antigo Testamento e significa a assembléia
do povo de Israel, convocada por Deus, particularmente a assembléia exemplar
aos pés do Sinai. Com esta palavra, agora é significada a nova comunidade dos
crentes em Cristo que se sentem a assembléia de Deus, a nova convocação de
todos os povos por parte de Deus e diante dele. O vocábulo ekklēsía faz a sua aparição, pela
primeira vez, sob a pena de Paulo, que é o primeiro autor de um escrito
cristão. Isto acontece no incipit
da primeira Carta aos Tessalonicenses,
onde Paulo se dirige textualmente "à Igreja dos Tessalonicenses" (cf.
também "a Igreja da Laodiceia", em Cl 4, 16). Noutras Cartas, ele fala da Igreja de Deus que está
em Corinto (cf. 1 Cor 1, 2; 2 Cor 1, 1), que está na Galácia (cf.
Gl 1, 2; etc.) portanto,
Igrejas particulares mas diz também que perseguiu "a Igreja de Deus":
não uma determinada comunidade local, mas "a Igreja de Deus". Assim
vemos que esta palavra "Igreja" tem um significado pluridimensional:
indica por um lado as assembléias de Deus em determinados lugares (uma cidade,
um país, uma casa), mas significa também toda a Igreja no seu conjunto. E assim
vemos que "a Igreja de Deus" não é apenas uma soma de diversas
Igrejas locais, mas que as várias Igrejas locais são por sua vez a realização
da única Igreja de Deus. Todas juntas são "a Igreja de Deus", que
precede as Igrejas locais singularmente e que nelas se exprime e se realiza.
É importante observar
que quase sempre a palavra "Igreja" aparece com o acréscimo da qualificação
"de Deus": não se trata de uma associação humana, nascida de idéias
ou de interesses conjuntos, mas de uma convocação de Deus. Ele convocou-a e,
por isso, é una em todas as suas realizações. A unidade de Deus cria a unidade
da Igreja em todos os lugares onde se encontra. Mais tarde, na Carta aos
Efésios, Paulo elaborará abundantemente o conceito de unidade da Igreja, em
continuidade com o conceito de Povo de Deus, Israel, considerado pelos profetas
como "esposa de Deus", chamada a viver uma relação esponsal com Ele.
Paulo apresenta a única Igreja de Deus como "esposa de Cristo" no
amor, um só corpo e um único espírito com o próprio Cristo. Sabe-se que o jovem
Paulo fora um feroz adversário do novo movimento constituído pela Igreja de
Cristo. Era seu adversário, porque vira ameaçada neste novo movimento a
fidelidade à tradição do povo de Deus, animado pela fé no único Deus. Esta
fidelidade expressava-se sobretudo na circuncisão, na observância das regras da
pureza cultual, da abstensão de certos alimentos, do respeito pelo sábado. Os
israelitas tinham pago esta fidelidade com o sangue dos mártires, na época dos
Macabeus, quando o regime helenista queria obrigar todos os povos a
conformar-se com a única cultura helenista. Muitos israelitas tinham defendido
com o sangue a própria vocação de Israel. Os mártires pagaram com a vida a
identidade do seu povo, que se expressava mediante estes elementos. Depois do
encontro com Cristo ressuscitado, Paulo compreendeu que os cristãos não eram
traidores; pelo contrário, na nova situação o Deus de Israel, através de
Cristo, tinha ampliado a sua chamada a todas as gentes, tornando-se o Deus de
todos os povos. Assim se realizava a fidelidade ao único Deus; já não eram
necessários sinais distintivos, constituídos por normas e observações
particulares, porque todos eram chamados, na sua variedade, a fazer parte do
único povo de Deus da "Igreja de Deus" em Cristo.
Para Paulo uma coisa foi
imediatamente clara na nova situação: o valor fundamental e constituinte de
Cristo e da "palavra" que O anunciava. Paulo sabia que as pessoas não
só não se tornam cristãs por coerção, mas que na configuração interna da nova
comunidade a componente institucional estava inevitavelmente vinculada à
"palavra" viva, ao anúncio do Cristo vivo em quem Deus se abriu a
todos os povos, unindo-os num único povo de Deus. É sintomático que nos Atos dos Apóstolos Lucas utilize
várias vezes, também a propósito de Paulo, o sintagma "anunciar a
palavra" (Act 4, 29.31; 8,
25; 11, 19; 23, 46; 14, 25; 16, 6.32), com a evidente intenção de pôr em
evidência ao máximo o alcance decisivo da "palavra" do anúncio. A
nível concreto, tal palavra é constituída pela cruz e pela ressurreição de
Cristo, em quem as Escrituras encontraram realização. O Mistério pascal, que provocou
a transformação da sua vida no caminho de Damasco, está obviamente no âmago da
pregação do Apóstolo (cf. 1 Cor
2, 2; 15, 4). Este Mistério, anunciado pela palavra, realiza-se nos sacramentos
do Batismo e da Eucaristia, e depois torna-se realidade na caridade cristã. A
obra evangelizadora de Paulo não tem como finalidade outra coisa, senão
implantar a comunidade dos crentes em Cristo. Esta idéia é ínsita na etimologia do
vocábulo ekklēsía que Paulo, e
com ele o cristianismo inteiro, preferiu ao outro termo de
"sinagoga": não somente porque, originariamente, o primeiro é mais
"laico" (uma vez que deriva da prática grega da assembléia política,
e não propriamente religiosa), mas também porque ele implica de modo direto a idéia
mais teológica de uma chamada ab extra,
portanto não de uma simples reunião; os fiéis são chamados por Deus, que os
reúne numa comunidade, a sua Igreja.
Nesta linha podemos
entender também o conceito original exclusivamente paulino, da Igreja como
"Corpo de Cristo". A este propósito, é necessário ter presentes as
duas dimensões deste conceito. Uma é de cunho sociológico, segundo o qual o
corpo é constituído pelos seus membros e sem eles não existiria. Esta
interpretação aparece na Carta aos
Romanos e na primeira Carta aos
Coríntios, onde Paulo assume uma imagem que já existia na sociologia
romana: ele diz que um povo é como um corpo com diversos membros, cada qual com
sua própria função, mas todos, mesmo os mais pequeninos e aparentemente
insignificantes, são necessários para que o corpo possa viver e realizar as
funções que lhe são próprias. Oportunamente, o Apóstolo observa que na Igreja
existem muitas vocações: profetas, apóstolos, mestres, pessoas simples, e todos
são chamados a viver cada dia a caridade, e todos são necessários para
construir a unidade viva deste organismo espiritual. A outra interpretação faz
referência ao próprio Corpo de Cristo. Paulo afirma que a Igreja não é somente
um organismo, mas torna-se realmente corpo de Cristo no sacramento da
Eucaristia, onde todos nós recebemos o seu Corpo e nos tornamos realmente o seu
Corpo. Assim se realiza o mistério esponsal que todos se tornam um só corpo e
um único espírito em
Cristo. Assim a realidade vai muito além da imagem
sociológica, expressando a sua essência verdadeira e profunda, ou seja, a
unidade de todos os batizados em Cristo, considerados pelo Apóstolo "um
só" em Cristo, conformados com o sacramento do seu Corpo.
Dizendo isto, Paulo
mostra que bem sabe e faz compreender a todos que a Igreja não é sua e não é
nossa: a Igreja é Corpo de Cristo, é "Igreja de Deus", "campo de
Deus, edificação de Deus... templo de Deus" (1 Cor 3, 9.16). Esta última designação é particularmente
interessante, porque atribui a um tecido de relacionamentos interpessoais um
termo que, em geral, servia para indicar um lugar físico, considerado sagrado.
Por isso, a relação entre Igreja e templo assume duas dimensões complementares:
por um lado, é aplicada à comunidade eclesial a característica de separação e
pureza que cabia ao edifício sagrado, mas por outro é também ultrapassado o
conceito de um espaço material, para transferir este valor para a realidade de
uma comunidade de fé viva. Se antes os templos eram considerados lugares da
presença de Deus, agora sabe-se e vê-se que Deus não habita nos edifícios
feitos de pedra, mas que o lugar da presença de Deus no mundo é a comunidade
viva dos fiéis.
Uma abordagem à parte
mereceria a qualificação de "povo de Deus", que em Paulo é aplicada
substancialmente ao povo do Antigo Testamento e depois aos pagãos, que eram
"o não-povo" e também eles se tornaram povo de Deus graças à sua
inserção em Cristo mediante a palavra e o sacramento. E finalmente um
derradeiro pormenor. Na Carta a
Timóteo, Paulo qualifica a Igreja como "casa de Deus" (1 Tm 3, 15); e esta é uma definição
verdadeiramente original, porque se refere à Igreja como estrutura comunitária
em que se vivem profundos relacionamentos interpessoais de índole familiar. O
Apóstolo ajuda-nos a compreender cada vez mais profundamente o mistério da
Igreja nas suas diferentes dimensões de assembléia de Deus no mundo. Esta é a
grandeza da Igreja e a grandeza da nossa chamada: somos templo de Deus no
mundo, lugar onde Deus realmente habita e, ao mesmo tempo, somos comunidade,
família de Deus, que é caridade. Como família e casa de Deus, temos que
realizar no mundo a caridade de Deus e deste modo ser, com o vigor que provém
da fé, lugar e sinal da sua presença. Oremos ao Senhor, a fim de que nos
conceda ser cada vez mais a sua Igreja, o seu Corpo, o lugar da presença da sua
caridade neste nosso mundo e também na nossa história
PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Quarta-feira, 15 de
Outubro de 2008
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