3.2 – São Paulo e o seu sentido
teológico e existencial
Mais
de uma vez no seu epistolário Paulo faz menção daquela realidade surpreendente
que o alcançou e o avassalou de um modo tal que alterou profunda e radicalmente
o curso de sua vida. Mas em nenhum momento ele deixa vislumbrar traços
psicológicos ou pormenores externos do que lhe sucedera. Tudo permanece sob as
cortinas do silêncio. Quando escreve sobre o acontecido, já se vão
aproximadamente vinte anos do fato. Mais do que recordação descritiva, após
cuidadosa maturação, o apóstolo se ocupou em interpretar tudo sob o signo da
intervenção direta e imediata de Deus. Ademais, ao referir aquele acontecimento
extraordinariamente singular, ele o faz de um modo tal que seu discurso se
entrelace intimamente com a exposição do seu Evangelho. Parece que o próprio
Paulo quer ver relativizadas aquelas suas experiências individuais e
psicológicas. Conta mais, para ele, que tudo aquilo seja visto nos quadros dos
desígnios de Deus em vista do Evangelho de Jesus Cristo.
Foi um evento de pura graça (1Cor 15,10).
Escrevendo
aos Gálatas Paulo indica qual era o conceito que, a partir do que experimentara
em Damasco, ele tinha de si mesmo. Sublinha a iniciativa gratuita do Pai, a
quem aprouve (euvdoke,w: comprazer-se;
considerar bom) “separá-lo
desde o seio materno” e o “chamou por sua graça” para que evangelizasse entre
os gentios (1,15-16). Aquela foi a hora da gratuidade do seu chamado. A
expressão “Desde o seio materno” relembra o chamado de Jeremias (Jr 1,5) e do
Servo (Is 49,1.5). Desde Damasco a inteireza da vida do apóstolo recebera novo
sentido e novo destino. A partir de então Paulo começava a reconhecer que não
mais pertencia a si mesmo. Deus mesmo estava por trás de todos aqueles
desdobramentos. E somente a partir de dEle era possível compreender tudo quanto
lhe sucedera.
A decisão soberana do Senhor se fazia conhecer somente naquele instante, mas
era já um desígnio prefixado desde os primeiros instantes de sua existência.
Por isso mesmo o “seu evangelho” não podia ser colocado em dúvida.
Em
2Cor 4,6 Paulo alude ao mesmo fato de Damasco em termos de uma nova criação: “Do meio das trevas brilhe a luz! Foi Ele
mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer brilhar o conhecimento da
glória de Deus, que resplandece na face de Cristo”. Na primeira criação
Deus fizera surgir a luz no caos primordial. Em Damasco Deus fizera
surgir a luz no coração de Paulo, cujo brilho procede do encontro com Jesus
Cristo. Daí em diante ele passou a “conhecer a glória de Deus”. Conexo a tal
“conhecimento” está também a missão.
Em
diálogo com os Filipenses indica que no caminho de Damasco “foi alcançado por Jesus Cristo” (Fl
3,12). Então aderiu a Ele. Sua história pessoal fora, a partir daquele momento,
colocada sobre outros trilhos. Suas forças e energias visaram participar dos
sofrimentos de Jesus Cristo e de sua ressurreição pois que fora encontrado pelo
Ressuscitado (v. 11). A adesão apaixonada de Paulo desencadeou uma total
mudança em sua vida. Sua linguagem forte retrata a intensidade da reviravolta:
o que era “lucro” tornou-se perda. O que antes plenificava sua vida, o que
considerava santo, pelo qual havia lutado com todas as suas forças
desfigurou-se em “esterco” (3,7.8).
Na
realidade, a conversão desencadeada por aquele encontro redirecionou
absolutamente a vida de um homem já profundamente religioso. O fariseu zeloso,
que cultuava a Lei mosaica, na realidade estava voltado sobre si mesmo. Para
alguém tão destacado no farisaísmo, mais do que seus coetâneos (Gl 1,14), Deus
teria coroado os seus méritos. A observância plena e minudente da Lei fazia
dele um homem com muitos “direitos” diante de Deus. Tratava-se, pois, de
confiança em si mesmo, dito melhor, era auto-suficiência religiosa ou orgulho
autocrata de quem acedia por suas próprias forças à salvação.
Para
um judeu de tantos brios religiosos, aferrado à Lei e seguro de sua fidelidade,
o novo caminho requeria muita luta interior. Somente uma experiência muito
intensa e muito forte poderia sustentar seu novo percurso. Quem antes era
“maldito” porque fora “suspenso ao madeiro” (Gl 3,13) revelou-se como Salvador
crucificado e ressuscitado. É a Ele que então Paulo entregou-se em obediência
de fé. A única medida da verdade do homem era o dom de Deus revelado em Jesus Cristo. Por
isso mesmo a vida do “alcançado pelo Senhor” recebeu uma outra expressão e
sentido: “Já não sou eu que vivo, mas é
Cristo que vive em mim” (Gl 3,20).
Lendo
com atenção os textos paulinos é possível reconhecer os traços psicológicos
típicos do convertido: “Adesão total à
nova causa e polêmica denúncia da falsidade da posição sustentada
anteriormente; forte e inabalável consciência da coerência da escolha feita;
segurança e coragem não obstante inúmeras adversidades e contestações. Fruto de
uma descoberta pessoal, sua fé se apresenta vigorosa e cálida de amor. Ao mesmo
tempo é intolerante e severo nos confrontos com os adversários”.
Compromissos de conveniência e meias medidas não eram de sua têmpera.
FIQUEM NA PAZ DE DEUS!
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