2 – São Paulo e os aspectos de
sua formação
2.1 – Formação Inicial, “média” e
ambiente cultural
Tarso
fora um berço de muitos e importantes mestres da filosofia. O fundador da
escola estóica, Zenão de Cicio, nascido em Chipre, é filho de um homem de
Tarso. Mas o estoicismo teve ainda outros mestres oriundos de Tarso: um outro
Zenão, sucessor de Crisipo, esteve à frente da escola estóica. Também os irmãos
Atenodoro, importantes filósofos do estoicismo são de Tarso. Um deles foi
mestre do imperador Augusto. O platônico Nestor também era originário da
cidade. O mesmo se pode falar de Lísias e Diógens, epicuristas.
O
geógrafo e historiador Estrabão, que teve contactos diretos com a cidade, escreve:
“Os habitantes de Tarso dedicam-se tão
avidamente, não só à filosofia, mas também a todo o conjunto da educação em
geral, que já ultrapassam Atenas, Alexandria e qualquer outro lugar que possa
ser citado onde haja escolas e palestras de filósofos. Mas Tarso é tão
diferente das outras cidades que os homens que gostam de aprender são todos
nativos, e estrangeiros não costumam demorar-se ali. Nem estes nativos ficam
por ali, pois completam sua educação no
exterior. E quando completam têm prazer em morar no estrangeiro e bem poucos
voltam para casa... Além disso, a cidade de Tarso tem todos os tipos de escolas
de retórica e, em geral, não só tem uma população próspera, como é bastante
poderosa, dessa forma mantendo a reputação de cidade-mãe” (Geografia 14,5,13).
O que
impressionou o antigo historiador não foi a superioridade ou antiguidade do seu
sistema educacional, mas a seriedade, o entusiasmo e o empenho com que os
habitantes buscavam instrução. A saída da terra natal estava ligada ao esforço
de galgar a maiores conhecimentos. Filósofos (Atenodoro e Nestor), que mais
tarde se tornaram governantes da cidade, muito se empenharam em promover a
instrução em Tarso.
Nas
escolas as crianças, a partir dos seis anos, eram ensinadas nos rudimentos de
leitura, escrita e aritmética. Também eram educadas para o respeito às
instituições do estado e da religião.
Era tradição entre as famílias judaicas da diáspora, primar pela boa formação
do seus filhos. Além da educação civil, eram muito esmerados na educação religiosa.
Desde suas primeiras iniciações à leitura eram ensinados nas observâncias que
formavam a base de sua identidade. A partir do treze anos deveriam observá-las.
Fílon escrevia: “Todos os homens anseiam
preservar seus costumes e leis, e os da nação judaica mais que todos os outros;
pois, considerando que receberam seus oráculos diretamente do próprio Deus, e
tendo sido instruídos nessa doutrina desde a mais tenra idade, trazem na alma
as imagens dos mandamentos”.
Na realidade, os meninos judeus, desde a infância, tinham que viver em dois
mundos: a convivência com os pagãos e a fidelidade ao judaísmo. E aprender de
ambos.
Em um
contexto assim Paulo deve ter conhecido a LXX, as Escrituras para os judeus de
língua grega. Desde a infância aprendiam as “Sagradas Letras”, como usavam
chamar (cf. 2Tm 3,15). Conheceu-as em profundidade. Para
um bom judeu elas (as Escrituras) eram uma fonte perene de discernimento. Nos
escritos de Paulo há aproximadamente noventa citações diretas. Ademais, para um
“hebreu, filho de hebreus” (Fl 3,5) é
bem possível que conhecesse, desde casa, também o hebraico/aramaico (cf. At
22,2).
Há
ainda que considerar que um filho de um cidadão romano, residente em uma cidade
do porte de Tarso, deveria aprender a atuar bem no mundo helenístico. Era
preciso ter bom domínio sobre a língua grega falada. Ademais, até mesmo a
leitura e interpretação da Septuaginta requeria um bom conhecimento da língua
grega escrita. Vale acrescentar ainda que até na Palestina as crianças judias
eram ensinadas a ler e interpretar Homero.
Nas escolas dos judeus da diáspora, então, com
muito maior desenvoltura tais textos eram manuseados, lidos e
retransmitidos. Aliás, deveria ser um aprendizado exigente, que empenhava muita
disciplina. Nos manuscritos da época nem sempre as palavras estavam separadas
umas das outras e não havia pontuação.
Nas
escolas gregas, quando o menino alcançava a adolescência, começava então, sua
formação no “gimnasium”. A formação consistia em atividades físicas e
atléticas, matemática e geometria, artes, filosofia e, com grande ênfase, a
retórica. Aliás, da retórica exercitada em Tarso, Estrabão, impressionado,
escreveu sobre a “facilidade predominante
entre os habitantes de Tarso, pela qual eles podiam falar imediatamente de
improviso, e sem cessar, sobre qualquer assunto” (Geografia 14,13-14).
Difícil saber qual era a aceitação, por parte das famílias judaicas, dos tais
“ginásios” e da instrução neles ministrada. Todavia, Fílon, enaltecendo,
interpreta-os como um lugar excelente para treinar “o corpo com ginástica e regras atléticas, para deixá-lo vigoroso e
saudável e lhe dar facilidade para ficar em pé e se mover, não sem elegância e
graça, e educando a alma com letras, números, geometria e todo o tipo de
filosofia”.
É
muito difícil aquilatar em qual medida Paulo recebeu toda esta formação. A
provável boa posição social de sua família sugere que estava ao seu alcance
aceder a tal programa educativo. Mas Paulo parece negar. Segundo suas próprias
palavras, ele se apresenta pouco afeito a persuasões de valor retórico. Em 1Cor
1,17 salienta que Cristo o enviou para anunciar o Evangelho, mas “sem recorrer à sabedoria da linguagem, a fim
de que não se torne inútil a cruz de Cristo”. Na mesma epístola, alguns
passos adiante, em 2,4, volta ao tema: “Minha palavra e minha pregação nada
tinham da persuasiva linguagem da sabedoria, mas eram uma demonstração de
Espírito e poder”. Em 2Cor 11,6 não se reconhece bom orador: “Ainda que eu sou imperito no falar, não o
sou no saber”. Aliás, na comunidade de Corinto, o grupo melindrado com
Paulo parecia reclamar uma retórica mais atilada: “Pois as cartas, dizem, são
severas e enérgicas, mas ele, uma vez presente, é um homem fraco e suas
linguagem desprezível”.
Todavia,
há bons motivos para interpretar a realidade por um outro ângulo. Em 1Cor 2,1-2
Paulo deixa clara a razão pela qual sua linguagem não tem os engenhos
retóricos, muito em voga no seu tempo, aos quais apelavam os filósofos
itinerantes. Ele se Explica: “Quando fui
ter convosco... não me apresentei com o prestígio da palavra ou da sabedoria...
pois não quis saber outra coisa entre vós, a não ser Jesus Cristo, e Jesus
Cristo crucificado”. Seu pensamento estava voltado à genuinidade da fé em Jesus Cristo : “Para que a vossa fé não se funde na sabedoria
dos homens, mas no poder de Deus” (1Cor 2,5). Tratava-se, portanto, de uma
opção do missionário.
Uma
análise atenta dos escritos paulinos deixa entrever que Paulo tinha em mãos a
arte discursiva grega. Ele poderia, se assim julgasse conveniente para a
mensagem do evangelho, recorrer às habilidades de linguagem retórica, para as
quais, provavelmente, exercitara-se já em Tarso. Estudos
comparativos das últimas décadas esclarecem que a “retórica de Paulo sugere proficiência e convicção que é improvável ter
adquirido sem longa prática e, talvez, também longos estudos”.
O texto de 2Cor 11,1-12,15, escrito “com um pouco de loucura de minha parte”
(11,1) evidencia qualidades discursivas profundamente arraigadas. Betz salienta que suas cartas, pelas “habilidades
retóricas, pela cuidadosa composição e pela elaborada argumentação teológica”,
constituem-se em obra-prima de literatura.
Estes
traços dos escritos paulinos deixam entrever que nosso personagem, “hebreu, filho de hebreus”, cresceu em um
ambiente urbano, com muitos contactos com pessoas de outras raças. Desde sua
metrópole de nascimento pôde experimentar, quase que diariamente, a abertura ao
mundo. Pessoas de outras culturas e mentalidades não eram um fenômeno estranho
para ele. Desde sua adolescência e juventude deve ter tido aproximações com
outros hábitos, outros costumes e outras formas de pensamento. E esta
retaguarda plural, urbana e cosmopolita configurou a sua linguagem. A título
exemplificativo, é possível vê-lo servir-se de termos e expressões típicos da
antropologia platônica: corpo, espírito, alma (1Ts 5,23). Ainda outro exemplo:
guardando semelhanças com filósofos neoplatônicos e estóicos, Paulo contrapõe o
“homem interior” ao exterior; a precariedade das coisas visíveis contrasta com
a imutabilidade das invisíveis (2Cor 4,16.18).
FIQUEM NA PAZ DE DEUS!
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