2.3 – São Paulo um evangelizador
com dúplice substrato cultural
Face
o esforço dos adversários de Paulo de impor aos cristãos vindos do paganismo
tradições, observâncias e usos judaicos, ele reagiu com palavras muito fortes,
indicando ser um homem de reações impetuosas. Entretanto sua vigorosa
contraposição aos “judaizantes” não obliterou sua feição religiosa e matização
teológica profundamente judaicas. O epistolário, visto como legado escrito da
sua obra evangelizadora, explicita, quer na forma quer no conteúdo, esta
transversalidade cultural radicada no judaísmo.
O uso
abundante que faz do Antigo Testamento, embora servindo-se da Septuaginta, trai
muitas similaridades com o modelo dos autores de Qumran e de outros autores do
período intertestamentário. Por vezes acomoda textos da Escritura ou confere
novo sentido às passagens que cita,
outras vezes recorre a alegorização.
Até mesmo retira expressões de um determinado contexto original e as reaplica
em quadros temáticos bem distintos.
Intervenções com este formato eram bastante usuais entre os mestres do
judaísmo.
Na realidade, o Antigo Testamento é muito importante para o
pensamento teológico paulino. Ele salienta que o “evangelho de Deus” era “prometido por meio dos seus profetas nas
Sagradas Escrituras” (Rm 1,2). Até a Lei, motivo de tanta controvérsia, tem
um valor pedagógico muito significativo: ela preparava para os tempos de Jesus
Cristo (Gl 3,24). Parece que, para Paulo, o Antigo Testamento sem o Novo seria
uma promessa não cumprida. E o Novo, sem o Antigo, seria uma realização não
prometida e nem esperada.
Por
outro lado, como já afirmado acima, Paulo tinha em mãos a arte discursiva
grega. E quando quis brandiu-a com habilidade. Suas epístolas traem esquemas de
argumentação próprios dos estóicos. São as chamadas “diatribes”. Trata-se de um
modo de discorrer em estilo familiar e coloquial, desenvolvido mediante debates
vivazes com um interlocutor imaginário. As frases são breves e questões são
interpostas. Bons exemplos deste formato discursivo podem ser encontrados em Rm
2,1-20;
3,1-9; 9,19-21.
Assim
como os discursos de Jesus ilustram imagens da vida agrária da Galiléia, os
textos de Paulo retratam contextos da cultura urbana de fundo helenístico.
Também para este caso podem ser aduzidos exemplos. É o caso das competições
olímpicas aplicadas ao esforço evangelizador de Paulo: “quanto a mim, é assim que corro... é assim que pratico o pugilato...”
(1Cor 9,24-27). Não faltam termos do mundo comercial (Fil 18), ou a
terminologia jurídica (Gl 3,15; Rm 4,1-2). Até mesmo a compra e venda de
escravos, vigente na época, emprestou linguagem a Paulo (Rm 7,14; 1Cor 7,22). A
lista pode ser longa quando se quer reconhecer traços helenistas na abordagem
de temas como “liberdade” (Gl 5,1.13), ou “consciência” (1Cor 8,7.10.12;
10,25-29; Rm 2,15), ou “natureza” (Rm 2,14). Também o vocabulário paulino
guarda muitas afinidades como o mundo helenista. Apenas a título
exemplificativo, pode-se observar Fl 4,8: “Finalmente
irmãos, ocupai-vos com... tudo o que é amável (prosfilh,j), honroso (eu;fhmoj),
virtuoso (avreth,),
ou que de qualquer modo mereça louvor
(e;painoj).
Esta
dúplice matriz cultural foi a condição de possibilidade para que o sentido da
história e da pessoa de Jesus Cristo fosse compreendido na sua originalidade
histórica e cultural mais plena. Mas também ensejou o anúncio do seu nome e da
sua mensagem para fora das fronteiras da Palestina. Sem Paulo, profundamente
arraigado ao fecundo caudal religioso do Antigo Testamento e do judaísmo,
dificilmente o cristianismo teria sido conhecido em sua genuinidade. Tampouco teria
dialogado com o mundo grego e, em seu meio, lançado raízes profundas. Ele podia
dizer com veracidade: “Para os judeus,
fiz-me como judeu...para os que vivem sem a Lei, fiz-me como vivesse sem a
Lei... Tornei-me tudo para todos” (1Cor 9,2o-22).
FIQUEM NA PAZ DE DEUS!
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