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LÉVINAS E A ÉTICA DA ALTERIDADE


LÉVINAS E A ÉTICA DA ALTERIDADE
Felipe Almeida Dantas*
Gabriel de Medeiros Lima**

Resumo


O presente artigo tem por objetivo investigar como Lévinas resolve a questão acerca da responsabilidade a partir da fundação de uma nova ética, considerando a possibilidade de encontrar a partir dela a solução para os problemas sociais e morais existentes. Como crítico da filosofia moderna e ocidental, uma vez permeada pelo mau uso da racionalidade e o não entendimento do sentido primordial da linguagem na sociedade, Lévinas vem propor uma nova forma de conceber a filosofia, alegando ser importante a valorização do outro, tendo uma atenção especial à linguagem entendida na sua dimensão face a face. Desse modo, é assaz fundamental fazer da ética a filosofia primeira, diz Lévinas, como também percorrer o caminho de análise do contexto histórico da modernidade, buscando, pois, entender o motivo pelo qual o racionalismo e a subjetividade se tornaram paradigmas para a formação de todo juízo de valor da cultura ocidental. Desse modo, nos propomos a analisar o pensamento de tal filósofo, destacando como ele apresenta, em seu discurso, a forma de comunicação para com o outro que deve ser concretizada no relacionamento face a face, e, enfim, sugerimos investigar o que seja a tão falada ética da responsabilidade, uma vez que percebemos a exigência que deve existir em nós para tomar a face do outro como a referência de um apelo por justiça e amor, sendo, pois, responsável para com ele. E assim, chegamos, então, à tese de que a ética da alteridade levinasiana é o suporte da responsabilidade social.

Palavras-Chave: racionalismo, conhecimento, responsabilidade.

Introdução


Hoje, em plena contemporaneidade, a sociedade ainda traz em si traços típicos que marcaram a modernidade e, principalmente, a filosofia ocidental. Traços dos referidos períodos nos revelam o que resultou do princípio da autonomia: a posse ou o domínio, diretamente e/ou indiretamente, do homem em relação a outros homens. Diretamente quando o homem já se reconhece auto-suficiente e orgulhoso a ponto de reduzir o outro a uma coisa ou seres que simplesmente vivem, e indiretamente quando se é notado um estado frio ao sentar ao lado do outro e agir como a própria sociedade ensina. Daí segue as seguintes questões: como Lévinas resolve a questão acerca da responsabilidade a partir da fundação de uma nova ética? E também nos perguntamos por que a cultura moderna e o mundo ocidental influenciaram e continuam influenciando, ainda hoje, a humanidade como um todo, fazendo-a representar os eus pensantes sob signo do poder de destruir e de dominar?
Para aprofundar nossa investigação, pautada nas questões acima propostas, iniciamos o discurso, partindo da temática acerca da crítica delineada por Lévinas contra a racionalidade e a cultura ocidentais. Abordamos o problema da subjetividade pensante como a referência epistemológica mais acentuada da modernidade. Vimos que intelectuais de todos os tipos: sociólogos, antropólogos, físicos, médicos, arquitetos e, principalmente, os filósofos pensaram a subjetividade como o alicerce para um povo livre. Mas, também, que tal pensamento abriu margem para outros problemas como, por exemplo, a exclusão do outro que, por sua vez, nos aparece como o diferente (o estranho).
Segue-se dessa preocupação, na segunda seção de nossa pesquisa, a temática referente à linguagem, à comunicação e à vida no pensamento de Lévinas. A linguagem, segundo ele, deve se vincular, sobretudo, à responsabilidade, tornando-a indispensável para toda espécie de relacionamento ou vínculo que o homem pode estabelecer para manter e assegurar o laço fundamental da existência para com o outro e consigo mesmo. Por isso, para ele, somente através da face do outro é que encontramos o diálogo, onde está implícito o apelo que alguém deve fazer manter o vínculo do mundo.
Não ser indiferente diante do outro seria já uma forma de respondê-lo, de ser responsável para com ele. E só por essa via que teremos uma melhoria nas nossas relações no cotidiano, onde visaremos o outro de tal forma que estaremos olhando para nós mesmos, não apenas como capazes da liberdade, mas, acima de tudo, do uso responsável da mesma, sem o qual perdemos a condição do vínculo do e com o mundo.
Por fim, o presente trabalho, em sua terceira seção vem traçar um caminho oportuno no tocante ao tema da subordinação da liberdade aos pressupostos da responsabilidade. Daí que a ética da alteridade se apresenta como um explícito problema abordado que acentua preferência ao outro, cuja exigência se faz sentir pela necessidade do contato comunicativo na vida.
Tal vivência abarca valores como respeito, amor, preocupação, atenção e, enfim, responsabilidade. Sair desse paradigma assustador da modernidade se torna o intuito primordial do que chamamos de ética da alteridade. Trata-se, também, de interligar a nossa razão com a ética no relacionamento face a face. Chamamos isso, pois, de racionalidade ética, onde visamos melhor atenção no que fazemos de nosso conhecimento.

1. Lévinas e a crítica ao racionalismo ocidental


O debate filosófico que toma de imediato o perfil de Emanuel Lévinas gira em torno da própria filosofia a qual, tem se apresentado de uma forma esplêndida e única em relação à história. É justamente o que se foi entendendo pela filosofia moderna e ocidental no que diz respeito ao eu e à sua existência. Todo o parâmetro relacional dos seres humanos na modernidade, diz Lévinas, vem nos dar uma nova roupagem para a filosofia. Assim, constatamos o pensamento levinasiano perplexo quanto à forma de se relacionar dos homens na sociedade. A crítica, em geral, se volta para a filosofia. Ela, como bem entendemos, dá ao homem a capacidade de se comunicar e se questionar perante a sociedade como o todo; a razão entra aqui como um processo bem ativo e antigo no homem. Desse modo, convém dizer que é através da ética da alteridade que Lévinas nos propõe uma nova forma de ser. Por isso que se faz, antes, assaz necessário lançar o problema histórico que tem triunfado na filosofia.
Entretanto, antes de adentrarmos a todo e qualquer conteúdo filosófico, é preciso perceber que a história tem um papel importante no perfil de cada filósofo. Quer queira ou não, o homem estará sempre sujeito a ser influenciado pela história na sua forma de pensar. Da sua história, o homem passa a trilhar uma nova história. Daí porque não podemos dialogar com Emanuel Lévinas se não tivermos diálogo com a evolução histórica da filosofia ocidental, se não compreendermos o que foi colocado como fundamento filosófico.
Lévinas esteve situado numa época que, de certa forma, foi influenciada por conflitos entre regimes totalitários. Ele era judeu. Mais tarde é que vem a se naturalizar na França. Lévinas, em sua vida profissional, conhece os filósofos Heidegger e Husserl, dos quais se tornou aluno. Percebe-se que ele também foi vítima do nazismo. Embora Lévinas tenha percorrido um caminho que o teria influenciado a viver como os demais, ele não se deixou ser vítima da forma de pensar dos modernos e, também, da ação terrível dos nazistas.
E devido sua capacidade filosófica, Lévinas se tornou um dos dois ou três filósofos mais discutidos na França. As obras “Totalidade e Infinito” e “Entre nós” tiveram grandes repercussões e, desse modo, nos possibilitou ter certa compreensão de seu pensamento. Muitos são os comentadores levinasianos, e, também, os que tomam o pensamento de Lévinas como fundamento verdadeiro para a nossa vivência: nesse rincão da Alemanha, onde ao atravessar o povoado éramos vistos pelos moradores como judeus, esse cachorrinho evidentemente nos considerava como humanos (POIRIÉ apud COSTA, 2000: 40), se expressou o filósofo que nos traz referência de sua vida durante o cativeiro imposto pelos nazistas.
Nada mais claro do que percebermos o fato de que alguém que passou pelas mãos de ações nazistas teria, de fato, um cunho específico de se mostrar diante da filosofia e da sociedade. Assim, Lévinas quis dar um novo passo para ela. O seu pensamento vem abrir as portas para um novo percurso e uma nova forma de entender o relacionamento dos seres humanos. Para tanto, é preciso ir mais além do que a filosofia nos transmite; não é o caso aqui de abandoná-la, mas, passar por ela e firmar o nosso entendimento num campo ético, ao qual, favoravelmente, se manifestou o próprio Lévinas.
No que tange ao pensamento levinasiano, trazemos, pois, à tona o tema do racionalismo moderno e ocidental que se tornou visível como problema para ele como, também, nós direcionaremos nosso olhar para a problemática da liberdade versus responsabilidade (cf. 3° seção).
Situar-nos na história, percorrer o caminho que fora construído por povos de culturas e línguas diferentes e pensar os problemas sociais nos requerem atenção e disposição para encararmos determinados fatores que influenciaram e influenciam, ainda hoje, os seres humanos e que vem se propagando desde a modernidade. Atitudes como essas nos trazem maiores preocupações quanto ao estudo de um período e a sua forma de influenciar a vivência do ser humano. Mas que, de certa forma, nos traz certo prazer de ser mais um dentre os formadores de opiniões que apostam na mudança e na eficácia das ações.
A Modernidade refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência (GIDDENS, 1991: 8). Tal pensamento se mostra em unanimidade diante de alguns autores que escreveram sobre a modernidade.
Trata-se de um período moderno que é bastante reconhecido por sua capacidade ativa e intelectual. Tomando nossa pesquisa a respeito do referido período, apresentamos o princípio da subjetividade como o correlato do pensamento moderno; queremos dizer, pois, que não podemos separá-los, uma vez que é notória a sua dependência. A subjetividade só teria se constituído na modernidade e, ao constituir-se, teria formado a própria época (LEOPOLDO, 2008?: 1). Daí porque não podemos entender, separadamente, nem a modernidade e nem a subjetividade.
Em suma, verificamos que a modernidade é um período onde se destaca capacidade intelectual e prática do homem. Dessa forma, o foco dessa época se mostra a partir do trabalho que o homem exerce na sociedade; lutando por sua sobrevivência e bem-estar, o ser humano tem destaque a partir do momento que se sobressai perante outrem. Característica específica da modernidade: o auge da razão. Tanto é que muitas revoluções acontecem pelo mundo afora. Revoluções originadas devido à insatisfação material em que se encontrava a maioria dos homens que buscava também e, acima de tudo, o alcance da liberdade.
A modernidade foi uma época que afirmou o homem como sendo aquilo que ele faz; o homem era influenciado pela ciência, vivia numa sociedade ordenada, desejava a liberdade (TOURAINE, 1994: 17). Daí porque o termo “liberdade”, nesse período assaz influente na vivência do povo, denota sentido maior que a responsabilidade, que o bem para com o outro. Em outras palavras, Touraine vai chamar esse período de “revolução da razão”.
De fato, “razão” e “sujeito” são dois termos vinculados ao pensamento filosófico moderno; muito será enfatizado o “sujeito”, ou, em outras palavras, o “eu pensante” (razão). Dentre os filósofos desse período, há de destacar os principais, a saber: Fichte, Schelling, Spinoza, Bacon, Kant, Descartes e, por fim, Hegel.
A razão é a identidade que se põe como Eu: identidade que se identifica – que volta a si – pela força de sua forma (LÉVINAS, 2002: 35), se expressou o filósofo ao dar o nosso ponto de partida no que tange ao problema que circunscreveu o período moderno. A filosofia moderna tem sido alvo de muitas problemáticas. Principalmente as que giram em torno da razão do sujeito, do homem que pensa a sociedade e governa-a com base na idéia de autonomia. Em suma, os problemas permeados na filosofia moderna são problemas de existência. O “ser” do homem entra como discussão na sociedade, sendo analisado como aquele que tem o poder do conhecimento. Quanto mais inteligente for o homem, tanto mais respeitado será na sociedade. O eu pensante questiona muitos filósofos modernos.
A “razão” passa a atribuir papel muito mais importante na vida do ser humano na modernidade. A “razão” e a “subjetividade” vão se mostrando como uma nova maneira de pensar e viver a sociedade. Da mesma forma pensaram Kant e Descartes quando enfatizaram o eu dotado de intelectualidade. A subjetividade é algo meramente inteligível ou intelectualmente acessível e sustentável (BICCA, 1997: 157), se expressou o autor ao apontar o pensamento moderno e, mais especificamente, o pensamento de Descartes, o que nos quer dizer que apenas pelo pensar é que sou sujeito.
Essa discussão relacionada ao eu pensante abarca problemas como a liberdade que, uma vez pensada pelos filósofos modernos, deve ser como o fundamento de que há um ser humano inteligível. E assim, o “Eu penso redunda em eu posso – numa apropriação daquilo que é, numa exploração da realidade” (LÉVINAS, 1980: 33). Tracemos, portanto, um breve histórico no que tange ao pensamento filosófico moderno a respeito do eu. Tomemos o texto de SOUZA et. al (2008: 125), que melhor assinala essa questão:
para Descartes, o único evidente que existe de forma clara e distinta é o eu. Para Kant, como para quase toda a modernidade, o sujeito é essencialmente racional. A razão é imaginada como a essência de um eu universal com leis comuns e necessárias para todos os seres humanos. O eu moderno é imaginado num estado de natureza original, como se fosse um indivíduo livre, autônomo, racionalmente auto-suficiente. Um eu que se basta a si mesmo e que vê nos outros um entrave para sua liberdade. O eu moderno é naturalmente individualista e, contudo, a sociedade exige algum tipo de co-responsabilidade com os outros e pelos outros, por isso uma das grandes questões desde o início da modernidade foi saber como se realiza a passagem do estado de natureza para o estado de sociedade.
Uma vez traçado a filosofia moderna, visando os principais pontos que concernem ao pensamento filosófico de Lévinas, nós vamos percorrer, ou, quem sabe, “desfazer” o caminho que fora construído pelos filósofos, expondo aqui o pensamento de tal autor. Percebemos que sua crítica se volta ao racionalismo que fora vivido pelos modernos e enfatizado pelos filósofos.
Mas a crítica não se resume apenas à vivência, mas, sobretudo, no que toca às suas conseqüências para os dias de hoje. A forma que estamos vivendo afirma um jeito de ser adquirido do período anterior. Daí porque a crítica de Lévinas se torna evidente e importante na sociedade atual. Lévinas parte do que ele denominou o abalo de toda a tradição cultural do ocidente, que revela que o sentido subjacente a toda história da civilização ocidental põe o ser humano e a sociedade sem rumo e orientação (OLIVEIRA, 2010: 28).
 Em outras palavras, Lévinas afirma que a filosofia ocidental – e, aliás, a própria civilização ocidental – exibe uma tendência freqüente, e a seu ver terrível, de reduzir tudo o que é fortuito, estranho e enigmático a condições de inteligibilidade, (HUCTHENS, 2007: 29). Como é possível termos uma realidade pautada pela ética se nós estivermos firmados nessa condição de inteligibilidade? O que nos parece é que podemos ficar preso nessa condição ao nos encontrarmos acima de tudo e de todos, com poder e auto-suficiência exagerada. Lévinas dá um basta à forma pela qual foi compreendida o eu pelos filósofos modernos e ocidentais. Para fundamentar esse pensamento, carece compreender que
Lévinas começa afirmando que a filosofia moderna ocidental caracteriza-se fundamentalmente pela noção de sujeito e por suas conseqüentes implicações, tais como a centralidade do problema do conhecimento, a problemática relação sujeito-objeto e a problemática constituição do sujeito e do mundo (COSTA, 2000: 52).
O eu, tão comentado pelos filósofos modernos, tomou lugar na sociedade como dominador de sua própria realidade. Devemos entender que toda a crítica de Lévinas se volta para o fato de a filosofia moderna e ocidental terem enfatizado demasiadamente o eu e, por isso, terem esquecido o outro, reduzindo-o a uma coisa ou objeto. O pensamento de Lévinas vem rebater não só a forma que foi pensada a subjetividade como, também, a forma da ontologia, com a qual também se ocupou Heidegger. A ontologia como filosofia primeira é uma filosofia do poder (LÉVINAS, 1980: 33). Daí porque a intenção de Lévinas vai ser a de tratar a ética como a filosofia primeira. Conforme Márcio (2000: 29), a ética é a filosofia primeira, anterior a toda filosofia possível. É anterior a aventura do saber e às truculências da tematização. A ética da responsabilidade vem trazer para a filosofia uma roupagem diferente e que, mesmo nos dias de hoje, nos vem despertar e fazer com que percebamos a violência que praticamos com nossa auto-suficiência e orgulho.
O que se pode notar é que a filosofia moderna e ocidental, uma vez que tem tido a razão como fator primordial do sujeito, tratou de uma relação que foge dos parâmetros éticos, ou seja, onde exista uma relação entre mim e o outro e que, a partir do rosto do outro, eu me sinta sensível, apto para agir com responsabilidade para com ele, respeitando-o e incluindo-o em minha relação que eu possa ter com as outras pessoas. Escapar da auto-suficiência do “eu” egoísta, do “pensar somente em si” são pontos tocados por Lévinas para ser colocada em prática a ética da responsabilidade. Desse modo, Lévinas se coloca em oposição ao pensamento moderno e ocidental. Em outras palavras, não se trata mais de apoiar o cogito de Descartes – o sujeito pensante – que se fundamenta como um elemento de poder, como aquele que prepotentemente quer conhecer o ser.
É justamente devido o “eu” determinador de toda a realidade, o “eu” que se destaca por sua inteligência, que Lévinas se mostra revoltado e apto para rever essa temática filosófica. Instituir uma ética da alteridade é ir de contra ao cogito de Descartes e à consciência. Isso não é o que se depreende do projeto fenomenológico de Husserl, à consciência do eu pensante e ao ser autoconsciente de Hegel, ao “eu” transcendental de Kant e, inclusive, à ontologia tida como filosofia primeira por Heidegger.
O que Lévinas quer nos chamar a atenção é que deve haver o cuidado em nós para que não façamos da racionalidade a arte de excluir a outra pessoa, favorecendo, com isso, o orgulho e a auto-suficiência. É preciso, portanto, para melhor compreender a ética da responsabilidade de Lévinas, entender qual é o verdadeiro sentido da linguagem e da vida para, com isso, ser ético na sociedade da era da comunicação e do diálogo, cujos temas serão abordados na próxima seção deste trabalho.

 

2. Conhecimento e vida em Lévinas


Repensar a filosofia é sempre um ponto de partida que encontramos ao mergulharmos nos estudos de Emanuel Lévinas. A filosofia moderna ocidental visou a consciência, a liberdade, a representação, a ontologia como saberes estritamente fixos, determinados em si mesmos, capazes de, por si sós, terem o domínio acessível do mundo. No entanto, o pensamento do referido filósofo vai mais além do que se tem tratado na filosofia: instituir a ética como filosofia primeira, justamente porque a dinâmica entoada anteriormente pela filosofia tem “esquecido” o verdadeiro sentido da linguagem, o que se foi fortalecido, com isso, a violência do eu para com o outro. Encontramos expresso o mesmo pensamento no artigo de FARIAS que diz
renovar a filosofia, e o pensamento de maneira geral, a partir da idéia de uma realidade eticamente constituindo-se. Tal necessidade aparece para Lévinas como a mais fundamental, talvez a única propriamente verdadeira, porque, antes de mais nada, justa, o ponto de partida ou o ponto de onde pode surgir qualquer partida (2006: 9).

2.1- Linguagem, Comunicação e Diálogo


Vários termos se direcionam para a perspectiva da ética como filosofia primeira. Duas grandes obras de Lévinas nos propõem certa compreensão do que seja a tão famosa ética que é tão instigante nos escritos principais do filósofo Francês, a saber: Totalidade e Infinito e Entre nós. Ao falarmos, por exemplo, da linguagem, nós encontramos de forma um tanto esplêndida, muitas linhas que concernem à idéia de infinito e totalidade. Encontramos, sobretudo, um pensamento não fácil de interpretação, mas tão profundo quanto seja a intelectualidade do autor.
Diríamos ainda, também, que no pensamento de Lévinas encontramos várias formas de expressar uma mesma coisa. Tendo em vista tanto aprofundamento sobre termos como totalidade, infinito, ontologia, diacronia, substituição, visage, metafísica, nós queremos explicitar que tudo se volta para um fim, que é o de remeter à ética da alteridade como fator de responsabilidade pelo outro. Desse modo, não queremos entrar em tamanha profundidade ao que se refere à linguagem, senão para trazer à tona o problema com o qual nos deparamos: como Lévinas resolve a questão acerca da responsabilidade a partir de uma nova ética?
Pensar o problema da linguagem e do diálogo na perspectiva levinasiana é, desde já, dar conta de que há a responsabilidade à nossa espera, pois não podemos falar da linguagem levinasiana sem se referir ao que chamamos de relação e que, de fato, é o alicerce para todo diálogo e possibilidade de responsabilidade. O pensamento levinasiano quebra a forma como a tradição pensara a linguagem; É o que vamos ver quando Lévinas diz que a ética possui uma racionalidade própria; um modo diferente de ser perante a outra pessoa. Daí porque é preciso elencar de que forma a linguagem levinasiana se mostra nessa realidade especificamente pautada do bem. Assim sendo, tratamos de uma linguagem cujo discurso se fundamentará numa relação face a face, onde a partir do olhar do outro, se é constatado o comando do eu no relacionamento.
De fato, muitos são os momentos cotidianos que possibilitam o encontro entre nós e as outras pessoas; não raras vezes são os momentos em que deparamos com a face do outro e, em seguida, necessitamos dar uma resposta. Devido a essa realidade que, como se pode perceber, é necessária para nós, enquanto ser humano, Lévinas já nos propõe, conforme nos diz Huchtens (2007: 72), que a linguagem seja originalmente expressão de comandos não-verbais nos relacionamentos face a face. Esse pensamento já é um ponto a ser aprofundado, até porque não há como estudar Lévinas ocultando os termos propícios à sua linha de raciocínio. Estamos falando de linguagem, daquilo que não podemos escapar quando nos deparamos com o outro. E o termo “expressão” é primordial ao que se é entendido por comunicação em Lévinas. Há o eu e há o outro como, também, há duas faces que comunicam entre si sentimentos e desejos, apelo especificamente voltado para a ética, onde manifesta, com isso, uma exigência da resposta.
Poderíamos refletir a linguagem levinasiana significando que a linguagem é antes de tudo a expressão que expõe nossos pensamentos ao risco, fragmentando aquilo que sabemos a fim de expressar aquilo que desejamos (HUTCHENS, 2007: 74). Percebemos, a partir dessa colocação, que a linguagem é bem mais profunda do que a mera comunicação entendida por cada um de nós.
Em suma, poderíamos dizer que a linguagem é o testemunho do eis-me-aqui, querendo significar, com isso, que há um estado de serviço entre o eu e o outro. Há sempre expressões partidas do eu e do outro. O pensamento de Lévinas se estende a uma linguagem até então pouco refletida na filosofia moderna ocidental; não simplesmente uma linguagem, mas, sobretudo, uma linguagem ética. Daí porque dizemos acima que a racionalidade terá um papel importante ao que chamamos de linguagem ética. Não podemos deixar de lado a razão ao tratarmos de uma ação dessa natureza, nos moldes levinasiano. Ela, a razão, é o que irá nos possibilitar agir de forma coerente e consciente. Então, para não complicarmos o que queremos expressar, é preciso perceber que a problemática da linguagem levinasiana tem a razão como um ponto de grande importância. Lévinas usa a racionalidade transformando-a num bem para com o outro. Trata-se, portanto, da racionalidade encarnada na vida dos interlocutores. A racionalidade ética significa uma nova possibilidade de ler a filosofia, procurando escutar a ordem pré-originária da responsabilidade humana que a pergunta pelo ser pressupõe, mas não chega a dizer (FARIAS, 2006: 4). A linguagem ética deverá agir de tal forma no relacionamento do eu para com os outros que difere da então linguagem comumente admitida. Assim, segue dizendo FARIAS (2006: 15) que
a linguagem não é um conteúdo de representações regidas por uma razão que se auto-legitima como tribuna de razoabilidade e verificação das idéias que podem ser comunicadas. A linguagem, ou melhor, seu sentido mais radical e próprio, não se esgota no momento em que os interlocutores comunicam idéias razoáveis e, portanto, inteligíveis. Há uma razão, que não é a mesma que rege idéias razoáveis, mediante a qual os interlocutores se apresentam, ou melhor, se ex-põem um ao outro, independentemente do conteúdo e da razoabilidade das idéias que utilizam para se comunicar. Há uma linguagem aquém e além, ou seja, fora da mera doação de nomes. Como dizê-la senão já recorrendo a nomes, idéias, representações? Como dizê-la de forma não puramente negativa, afirmando simplesmente o que ela não é? É necessário não só inventar novas categorias como também dar a elas um espaço de inteligibilidade filosófica que deve necessariamente passar pelo problema da linguagem e da racionalidade.
Neste sentido, nós seríamos de tal forma superficial ao sermos obscuros não tratando da linguagem como discurso. Esse caminho será importantíssimo para chegarmos à ética da responsabilidade. Discurso entendido como análise do ser humano que é, em si, diferencial; cada homem com seu jeito de ser e de se mostrar, se apresentar; assim, o homem tem uma história. Daí porque é preciso termos em mente de que o fato de o homem ter uma história, ele tem, também, uma forma específica de ser. Desta maneira, nós constatamos que o discurso tem sua revelação à maneira que o outro se apresenta. Portanto, o discurso é tanto vibração da fala como, também, o próprio silêncio, porque
o discurso é a sinceridade da pele nua, sem qualquer proteção, exposição pela qual a linguagem, na ausência de suas estruturas basilares, se revela como o próprio sustentáculo do mundo humano, base da aliança ética pela qual o mundo se constitui humanamente. (FARIAS, 2006: 121)
Percebemos com essa afirmação que a linguagem passa a ter verdadeiro sentido no nosso cotidiano quando, uma vez entendido que antes o mundo vivia como que sem linguagem, nós passamos a trazer os nomes e os objetos à nossa presença, tamanho é o gesto que se manifesta por uma racionalidade direcionada pela ética. Falamos em pele nua querendo dizer que o rosto do outro se mostra como liso, mas que possui uma comunicação esplêndida que enaltece por si só.
E também devemos compreender que a linguagem se mostra como dois recursos firmes e dependentes um do outro, a saber: a tematização e a comunicação. Sem mais ou menos, devemos acordar que ao falarmos de tematização nós estamos dando um sentido mais concreto à linguagem; um sentido, poderíamos assim dizer, relacionado à existência da fala entre o eu e o outro. Falamos em comunicação como que deixando um alerta de que ela e a linguagem trilham uma linha de raciocínio inseparável; e comunicação entendida como algo que é indispensável do sujeito no relacionamento, levando em consideração o fato de que ele tem um dever para cumprir, uma resposta para dar. Para fundamentar esse nosso pensamento, nós vamos recorrer a uma citação de FARIAS (2006: 121), que irá remeter a esse ponto. Assim ele escreve que
não há como separar as duas “funções” – tematização e comunicação –para entender a linguagem: quando falamos já estamos orientados para alguém, mesmo se falamos em pensamento nos dirigimos menos para nós mesmos (...). A comunicação não é uma decisão do sujeito, muito embora ela apareça como uma atividade consciente de um sujeito autônomo. Mas a autonomia do discurso carrega em uma espécie de “região escura” uma dimensão de passividade que, no entanto, lhe pertence. A linguagem é o ponto de encontro onde o sujeito se revela como autonomia, pelos temas que ele pode oferecer, e heteronomia, pelo fato de que ele é despertado, desde fora dele, nesse oferecimento. Tematizar a linguagem numa perspectiva de unidade estrutural, esperando que ao final a tematização traga seu tema inteiro dentro dela é uma tarefa impossível. Não é possível trazer à luz do tema, da mesma forma como o fazemos com a estrutura objetivante da linguagem, a passividade que também lhe é constituinte.
Tendo em vista a linguagem tida como aquela que apresenta um tema no relacionamento face a face e, também, como comunicação e autonomia[1], nós precisamos acrescentar ao que se refere à linguagem como sendo “dizer” e “dito”. Tratamos do dizer e do dito justamente quando remetemos ao discurso propício à linguagem; é no relacionamento face a face que acontece algo que chamamos de decisão. Queremos nos expressar com isso que na presença do outro, nós necessitamos falar alguma coisa; não seria o fato de ficarmos neutros que trataríamos da então linguagem citada neste trabalho. Por isso, o dizer e o dito nos apelam para responder algo diante do outro; tratamos aqui de uma expressão bastante concreta. O dizer e o dito são linguagem porque remetem a um exercício voltado para a outra pessoa. Olhar e rosto são duas palavras que entendemos, a partir do filósofo, por um mesmo sentido; elas vinculam à ideia de dizer e dito no relacionamento. No que tange ao rosto, nós constatamos que a abordagem dos seres, na medida em que se refere à visão, domina os seres, exerce sobre eles um poder (LÉVINAS, 1980: 173). Vejamos ainda o que nos diz o filósofo a respeito do que abordamos:
sempre distingui, com efeito, no discurso, o dizer e o dito. Que o dizer deve implicar um dito é uma necessidade da mesma ordem que a que impõe uma sociedade, com leis, instituições e relações sociais. Mas o dizer é o fato de, diante do rosto, eu não ficar simplesmente a contemplá-lo, respondo-lhe. O dizer é uma maneira de saudar outrem, mas saudar outrem é já responder por ele. É difícil calarmo-nos diante de alguém; esta dificuldade própria do dizer, seja qual for o dito. É necessário falar de qualquer coisa, da chuva e do bom tempo, pouco importa, mas falar, responder-lhe e já responder por ele (LÉVINAS, 1988: 80).
Ora, uma vez que o olhar é de fundamental importância para o ser humano, nós encontramos Lévinas dando extrema vitalidade a essa expressão no que se refere à ética. Segundo ele, é lícito enfatizar o outro nesse ponto acerca da linguagem. É justamente a partir do olhar do outro que acontece todo o sentido ético apresentado por Lévinas. Muitas vezes passamos ao lado das pessoas e nem mesmo as enxergamos, ou seja, não olhamos os rostos que, segundo o filósofo, manifestam uma súplica.
Daí porque se é entendido o olhar como linguagem, porque ele fala algo; embora a nossa auto-suficiência extrapole nosso limite não nos possibilitando o entendimento de que alguma ação deveria ser feita diante do outro. O outro, pelo seu olhar, é já discurso, é já palavra, assim se expressou Farias (2006: 29) ao falar do olhar que, embora pareça longe de falar algo, é, de fato, linguagem. Todavia, qual seria o significado dessa linguagem manifestada através do rosto do outro que se aproxima de nós? Podemos, realmente, ouvir alguma coisa a partir do olhar do outro? De fato, algum sentido tem em relação ao olhar do outro. Não é a toa que estamos remetendo à linguagem levinasiana que, tendo sempre em vista uma finalidade ética, se mostra mais eficaz no relacionamento face a face. A fala do olhar/ rosto do outro se volta para um apelo. Lévinas (1988: 80) escreve que
o “Tu não matarás” é a primeira palavra do rosto. Ora, é uma ordem. Há no aparecer do rosto um mandamento, como se algum senhor me falasse. Apesar de tudo, ao mesmo tempo o rosto de outrem está nu; é o pobre por quem posso tudo e a quem tudo devo. E eu, que sou eu, mas enquanto primeira pessoa, sou aquele que encontra processos para responder ao apelo.
Imaginemos, pois, quando o outro se aproxima de nós. A sua aproximação não é simplesmente um sinal de que alguém está chegando perto, alguém que possua braço, perna ou cabeça. A sua aproximação não nos diz apenas o fato de que alguém, como eu, possui existência. Nós devemos perceber que a dignidade humana terá maior respeito quando o próprio homem entender o verdadeiro sentido da linguagem: o convite e a fala. Desse modo, a aproximação do outro traz consigo o rosto que manifesta o primeiro discurso. O rosto fala, comunica algo. E outro ponto a ser colocado é que a aproximação do outro nos coloca em questão. Já expressamos isso ao afirmar que o rosto é linguagem. E por ser linguagem, nós somos questionados pelo outro; e por sermos questionados, nós necessitamos dar uma resposta.
Desde já nós enfatizamos que a linguagem é muito mais do que imaginamos. Desse modo, a linguagem, então, não é apenas sobre nomear, apresentar um tema, alcançar o conhecimento, etc. Pelo contrário, ela se origina no relacionamento face a face. A outra pessoa surge e seu surgimento exige nossa resposta (HUTCHENS, 2007: 74). Na seção anterior, nós dizemos que o eu – a partir de sua auto-suficiência – tratou de forma agressiva e violenta a ação para com o outro. Assim aconteceu devido a racionalidade de uso não organizado eticamente. A partir daí a violência passou a tomar posse nas atitudes do ser humano. E com base nesse itinerário, Lévinas vem nos propor a ética da alteridade justamente nos alertando sobre a importância que a outra pessoa tem para com o eu.
Em suma, nós poderíamos dizer que a aproximação do outro nos faz ficar paralisado, fixo, de forma que nada de desagradável e preocupante venham a acontecer. O outro faz com que o eu fique exposto à negação total de assassinato, mas o proíbe por meio da linguagem original de seus olhos indefesos (LÉVINAS, 1980: 199). Assim, Lévinas nos explica que, quando permitimos, o outro se torna instrumento vivo da continuidade do discurso da vida em andamento que havia iniciado com o eu. Há algo no caminho que estabelece os horizontes da fala e nos faz agir de forma diferente, que é justamente o rosto do outro. O rosto fala até mesmo antes que alguma palavra seja emitida.
Há uma abertura no ser humano – dotado de inteligibilidade – para questionar de forma livre a linguagem que se é executada por si mesmo. Porém, Lévinas não abre mão de um pensamento especificamente direcionado a uma mudança do agir; ser um ser humano racional por si só não é suficiente para suprimir a indiferença e a exclusão que penetraram no mundo. É necessário compreendermos a exigência que habita em nós diante da face do outro e que, devido ao fato de estarmos habituados com a mesma música de sempre – a inteligibilidade pautada da realidade, mas, fora dos parâmetros éticos – está oculto como, também, se oculta o apelo que o outro tem para nós, pelo fato de não entendê-lo, ou, melhor dizendo, não compreendermos a importância de sua face.
É exatamente no relacionamento face a face que há o comando do eu perante a outra pessoa. O eu deve responder ao outro; não deve ser levado muito em conta se a resposta será um não ou um sim. O fato de recusarmos dar uma resposta à outra pessoa já é uma resposta. A injunção “você deve...” é manifestada através da aproximação do outro. O rosto já faz um apelo. A linguagem vai sendo revelada através desse contato entre o outro e o eu. Eis que encontramos na injunção proposta por Lévinas uma atitude ética: o eu deve responder ao outro. Não se trata aqui do que o eu deve fazer, mas, como Lévinas sempre enfatiza, que o eu deve fazer algo. Em vez de o eu fazer determinada coisa perante o outro, o rosto o apela para fazer outra; essa outra atitude direcionada pela ética, onde o respeito e a responsabilidade tomam o centro da discussão. Percebemos também que a injunção desperta a consciência do eu de que é urgente dar uma resposta. Desse modo, o eu vai assumindo o seu dever como ser humano ético na sociedade. É justamente a partir da iniciativa do eu diante do outro que todo tipo de maldade e violência vão sendo eliminado na sociedade. Eis o sentido levinasiano da linguagem: o homem – mesmo dotado de inteligibilidade – é capaz de ter dentro de si uma sensibilidade autêntica e eficaz no tratamento para com o outro que – a partir de seu rosto – manifesta uma súplica, uma resposta.
o rosto onde se apresenta o outro – absolutamente outro – não nega o mesmo, não o violenta como a opinião ou a autoridade ou o sobrenatural taumatúrgico. Fica à medida de quem o acolhe, mantém-se terrestre. Essa apresentação é a não violência por excelência, porque em vez de ferir a minha liberdade, chama-a à responsabilidade e implanta-a (LÉVINAS, 1980: 181).
A linguagem se mostra de tal forma que vai mais além daquilo que pensamos ou imaginamos. O mundo racional pode até suprimir toda e qualquer relação ética que exista na sociedade. No entanto, há sempre algo que favorece e que não deixa as coisas se calarem e nem mesmo violentar o pouco de respeito que ainda se faz presente no relacionamento entre o outro e o eu. Para tanto, é preciso não perder de vista o que faz do ser humano mais “completo” e digno numa sociedade que triunfa da diversidade. Necessitamos saber quem está ao nosso lado ou com quem convivemos; faz-se necessário entender quem é o outro, segundo Emanuel Lévinas e, também, como a responsabilidade se mostra como tal para manifestar a ética que fala mais alto que a violência e a falta de respeito.

3. Subordinação da liberdade aos pressupostos da responsabilidade


A ética da alteridade é a grande temática do pensamento filosófico de Emanuel Lévinas. Pensamento este que nos leva a desenvolver um trabalho na mesma perspectiva do filósofo: vê na ética a solução até então ausente nos problemas existentes na relação do ser humano. Assim nos expressamos porque a sociedade – a partir do que constatamos na diversidade de ser do homem – nos revela o analfabetismo na relação para com o outro; se somente o conhecimento adquirido nas escolas, ou seja, o saber formal for o segredo para mudar uma realidade cada vez pautada na auto-suficiência e no orgulho, muito devemos enfatizar que tão escasso o conhecimento filosófico se mostrará. Portanto, é bem mais importante saber do que se trata a ética da alteridade; é, pois, uma necessidade que deve servir de fundamento na existência do ser humano.
Grandes filósofos tiveram importante papel na trajetória filosófica de Lévinas. Há, nós poderíamos assim se expressar, um debate circunscrito entre o filósofo lituano-francês e os filósofos da então modernidade, bem como alguns filósofos da tradição. Trata-se de um debate que traz à tona problemas que partem, principalmente, da realidade na qual no homem está inserida. É justamente daquilo que o homem faz de sua experiência, de sua vivência com os outros que muito se indaga Lévinas. Embora não longe de questionar a sociedade conturbada por sua linha estritamente inteligível, o filósofo mostra que a mudança se dá a partir de uma vivência ética. Mesmo visando o ser humano racional, se é notado uma contribuição de nossa inteligência para a prática do bem e da justiça.
O pensamento de Dostoiévski (apud LÉVINAS, 1982: 90) que explicita que cada um de nós é culpado (por tudo e por todos) perante todos, e eu mais que os outros nos colocará em reflexão acerca da ética da alteridade. Quando falamos em culpa, nós estamos remetendo, também, à responsabilidade. Desse modo, convém dizer que o princípio último da ética da alteridade levinasiana é a responsabilidade. Trataremos da então ética da responsabilidade neste capítulo, bem como frisar uma das grandes problemáticas tida na modernidade, que é a liberdade versus responsabilidade. Mas para tratarmos desses pontos, nós nos sentimos como que lançados, primeiramente, a entender o motivo pelo qual o racionalismo se tornou tão evidente em nossas relações, a ponto de termos nossos olhos vendados no tocante à dimensão prática da vida humana, ao de visarmos desta o rosto como linguagem.
Assim sendo, faz-se mister entender a convivência do homem na sociedade tomando a “evolução” como a chave de saída de um ponto para o outro como, por exemplo, entre o mundo medieval e o moderno. Assim acontece porque a própria história do ser humano nos conduz a perceber que não somos determinados por uma essência inflexível, em outras palavras, o nosso próprio eu é marcado e constituído pela mudança e diferença. Mais cedo ou mais tarde, o homem se encontra consigo mesmo e com o mundo e, diante disso, a mudança vai tomando parte em seu ser. Basta considerar a mudança física pelo qual o homem passa ao longe de seu desenvolvimento. Justamente no dia-a-dia que as coisas vão se mostrando e se manifestando para ele.
Este, à medida que vai evoluindo – como já percebemos no pensamento de John Locke ao afirmar a mente humana como uma caixa vazia – vai se firmando na sociedade, onde passa a procurar um lugar e a construir a sua própria vida. Sobre esse aspecto de mudança, Laraia (2009: 25) observou bem no que diz respeito a John Locke, alegando assim acontecer por ocasião do nascimento, dotada apenas da capacidade ilimitada de obter conhecimento. Tudo isso se volta para uma única finalidade, que é o de ser feliz. Já que a evolução faz parte, poderíamos assim se expressar, do vocabulário da existência do ser humano, nós temos como fundamento de tal afirmação o próprio giro histórico do mundo, ou seja, a cada tempo que vai se passando, as coisas vão mudando, os pensamentos vão se firmando e tomando novos rumos. Muito se é comentado sobre isso na modernidade. E, observando esse período, nós percebemos a racionalidade como sendo a grande presença que determina a mentalidade deste período. O ser humano, em sua subjetividade, se resolve por sua formalidade e inteligibilidade.
Apesar disso, sentimo-nos como que questionados pela própria racionalidade. “Até onde chegaremos?” é, pois, um questionamento que já julga o percurso do racionalismo que encontramos as avessas na sociedade. Reconstruindo esse discurso, nós nos deparamos, pautados na tradição, com o fato de que a modernidade e seu discurso transmitem, de certa forma, uma coerência. De acordo com a idéia de coerência do pensamento dos modernos, o racionalismo foi o foco que esteve presente na vivência do homem. Há autores que remetem a época da modernidade como a época do individualismo, como, também, na visão de Baudelaire, a palavra herói marca o período moderno, assim, para viver a modernidade é preciso uma formação heróica (WALTER, 2000: 104).
O que a racionalidade provoca, pois, no pensamento filosófico de Lévinas? Ora, tal como afirmamos, a pergunta até onde chegaremos? é a própria problemática que penetra no raciocínio humano. Ela nos coloca em xeque quanto ao fim que podemos alcançar, ou seja, nós, uma vez que somos tidos como heróis, somos capazes de ir mais além, de se realizar cada vez mais. Daí porque Lévinas critica a filosofia moderna e, também, ocidental, devido à ânsia de poder que a razão concede e que acaba determinando a vida do homem. Para ele, o que nos direciona para o mundo humano não é o fato de termos poder ou sermos racionais, mas, à medida que o homem cresce socialmente e, nesse sentido, eis o que diz Hutchens (2007: 31) ao reportar-se ao pensamento de Lévinas quando trata de tecer a crítica ao racionalismo moderno, o eu vem a estar ao mesmo tempo separado da realidade e tendo mais poder sobre aquela realidade que ele reduziu e adequou em sua busca por um conhecimento absoluto.
A crítica de Lévinas denota, poderíamos assim nos expressar, o limite que deve existir entre a racionalidade e o ser humano. Porque se o homem se deixa ser levado por essa ânsia de poder, ele acaba sendo dominado pela autonomia auto-suficiente. Segundo ele, tal “auto-suficiência” é percebida no homem que não enxerga moralmente o outro que faz parte de seu convívio. Assim, o racionalismo se faz tão claro e evidente que a face do outro se torna obscuro perante tantos eus. E essa obscuridade nos coloca frente a frente com nossa própria autonomia auto-suficiente que, de certa forma, não nos oferece senão a morte do campo ético em nossas relações. Hutchens (2007: 31) diz que
a autonomia auto-suficiente é alcançada quando o eu está separado do mundo, tem poder sobre ele e está magistralmente subordinado às leis universais que lhe dão objetivo e justificação. Por isso, o eu não só melhorou seus meios de acesso à realidade como também transformou seu próprio status naquela realidade.
Essa prática do homem moderno termina por encerrá-lo no isolamento. Mas segundo Lévinas, em que consiste tal isolamento? Entende-se por isolamento do eu o fato de o homem buscar colocar-se como distinto em relação a tudo e aos demais. Mas o significado propriamente levinasiano se dá quando o eu se encontra no grau que lhe conduz ao reconhecimento apenas do que ele é capaz e, inclusive, do reconhecimento da exterioridade do homem. Lévinas parte do pressuposto de que a racionalidade ocidental despe os indivíduos de todas as facetas de suas existências que são peculiares, reduzindo-os a uma multidão sem faces, que vive ao lado anonimamente (HUTCHENS, 2007: 29). Por isso, para ele, tal vivência exige um apelo ético que renove o relacionamento do ser humano pela prática do exercício responsável da liberdade. Deste modo, não poucas vezes encontramos pessoas que vivem como que em desertos, em lugares isolados; Passamos ao lado delas e nem sequer as olhamos; sentamos ao lado delas nos ônibus que pegamos, mas, mesmo assim, é como que se não existisse o outro. Lévinas nos chama a atenção para esse estilo de vida que a racionalidade nos conduz e propõe uma nova linguagem das relações para o ser humano.
Tendo em vista a problemática que gira em torno da racionalidade moderna e ocidental, onde visamos a auto-suficiência e o orgulho do eu, nós contrapomos essa linha de pensamento ressaltando a ética da alteridade de Emanuel Lévinas. Ética que nos remete a uma vivência que não mais corresponda às exigências propostas pela racionalidade restritiva, onde observamos a existência de um mundo sem faces. Somos, pois, convocados a usar a nossa faculdade racional para a compreensão de que a sociedade não pode ser tida como assassina da relação entre o eu e o outro; eu, que sou um ser humano, não posso tomar posse de minha vida sendo irresponsável no uso que faço de minha liberdade.
A racionalidade ética deverá ser um apoio para a nossa mudança quanto ao nos fazer assumir e a reconhecer as muitas faces dessa vivência. É importante entendermos que a linguagem ética da responsabilidade em Lévinas abre a porta para uma nova realidade. Uma linguagem que se manifesta através da face do outro e, por isso, nos exige uma leitura assincrônica. Quando remetemos a linguagem o papel de diacronia, ou, em outras palavras, serviço, nós queremos dizer, a partir do filósofo, que nossa resposta deve estar voltada para uma atitude de serviço diante do outro que se aproxima de nós. O “eis-me-aqui”, tão citado por muitos estudiosos de Lévinas, nos faz perceber que o rosto do outro é linguagem, ou seja, transmite algo para nós. Daí porque a exigência que recai sobre o eu é que ele não deve ficar preso ao seu orgulho e à sua individualidade.
Quando falamos do outro, nós não estamos falando de qualquer outro, mas de alguém que é capaz, através de sua face, de colocar o eu em estado de alerta. Então, o outro é tão forte quanto imaginamos, pois a sua singularidade – tal como Lévinas defendia – mostra que há importância simplesmente por ele manifestar-se através de sua existência peculiar ter a existência. O outro supera o eu a partir do momento em que a face se mostra como tal no relacionamento livre e, por isso, responsável da experiência do deixar ser. A outra pessoa é dona por causa do efeito que ela tem sobre o eu. Logo, o outro é aquele que está nu, é o estrangeiro, o órfão, o viúvo, o estranho, enfim, poderíamos assim complementar o pensamento levinasiano: o outro é aquele que apela o fim do orgulho e da violência do ser humano. É aquele que, a partir de sua face, dá um basta ao mundo violento em que circunscrevemos nossa moradia. No relacionamento face a face “o outro põe em dúvida a liberdade do eu e depois exige que ele use essa liberdade responsavelmente” (HUTCHENS, 2007: 38).
Daí segue-se, com essa afirmação, que o outro se torna tão poderoso, que o eu – diante da face do outro – não pode fugir, mas precisa dar uma resposta. Muitas vezes, o eu imagina e cria coisas sobre o outro, sobre o que ele seja; nesse sentido, a racionalidade exerce um papel importante nesse processo, a ponto de ignorarmos o outro que se aproxima de nós, porque o que quer a razão é se firmar pelo primado do eu. Porém, o outro é absolutamente outra pessoa no sentido de que o pensamento que o eu tem a respeito do outro não corresponde ao que, de fato, o outro é, como diz Lévinas, “superior a mim, e, no entanto, mais pobre do que eu”. A outra pessoa será sempre outra em relação ao eu que se aproxima, mas, ela será um eu diante de infinidades de outros. De semelhante forma se expressaram Realle e Antiseri (2006: 425) quanto essa dimensão de entendimento do eu em relação ao outro no relacionamento face a face quando diz que o outro se impõe com sua irredutível alteridade: o outro me olha e se refere a mim, e desfaz da ideia que dele tenho em mente.
Cotidianamente falamos ou comentamos sobre a violência que presenciamos ou assistimos na televisão. São noticias que nos deixam pasmos quanto à crueldade e força que habitam no ser humano. Esse fato, triste e preocupante, que se faz presente no nosso dia-a-dia, uma vez que constatamos muitas mortes e roubos, nos dão a clareza do quanto à relação ética tem sido e é ausente no relacionamento entre os eus e os outros. Daí a importância da responsabilidade: ela entra nesse papel de eliminação do orgulho, da exclusão e da auto-suficiência como um grito de alerta para os homens. O pensamento de Lévinas vem na hora exata em que se é preciso bater na tecla e rever o tipo de vivência com a qual estamos habituados. Conforme o que fora dito na primeira seção no 11° parágrafo, o período moderno ressaltava a anterioridade da liberdade sob a responsabilidade, nele o homem inteligível se mostrava como livre, a ponto de demonstrar que ele “pode ir muito mais além”, assim, pela liberdade o homem se mostra capaz, antes, de ser responsável. Daí segue-se que é preciso a subordinação da liberdade à responsabilidade. Logo, segundo Lévinas, nós só seremos livres se formos, antes, responsáveis.
A Ética da responsabilidade pode até não suprimir a violência que atinge homem a homem na sociedade. No entanto, o discurso de Lévinas marca presença e se mostra uma exigência para ele. É desse contexto que nasce, portanto, o debate existente entre Lévinas e Heidegger, posto que este também remonta aos mesmos problemas com o qual aquele se ocupa. Para o caso de Lévinas a questão relativa à existência do homem é um tanto diferente de como entendia os existencialistas, por isso a subjetividade levinasiana se vincula ao relacionamento ético, uma vez que cada homem tem o papel de ser responsável. A responsabilidade levinasiana abrange aspectos que até agora discutimos. Portanto, é preciso entender mais a fundo o que seja a tão falada ética da responsabilidade. Vejamos o que nos diz Lévinas no tocante à responsabilidade:
no livro, falo da responsabilidade como da estrutura essencial, primeira, fundamental da subjetividade. É em termos éticos que descrevo a subjetividade. A ética, aqui, não aparece como suplemento de uma base existencial prévia; é na ética entendida como responsabilidade que se dá o próprio nó do subjetivo. Entendo responsabilidade como responsabilidade por outrem, portanto, como responsabilidade por aqui que não fui eu que fiz, ou não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito, é por mim abordado como rosto (LÉVINAS, 1982: 87).
Partindo dessa afirmação que fala da ética da responsabilidade, que significa tratá-la como a filosofia primeira, a partir da qual todas as coisas se movem? Quando falamos em ética da responsabilidade, não podemos esquecer que estamos falando de relações, e, com isso, há o significado de que o homem não está sozinho no mundo. Ele nasceu e veio ao mundo para se relacionar com os outros seres humanos. Acima falamos da violência, porém, o mundo sem faces de que tanto falamos no início deste capítulo, já conduz ao tipo de violência que se volta para uma sociedade que se diz não ter nada a ver com a existência da violência. Assim, esse fato já traz um alerta: todos nós somos culpados por tudo e por todos, como se expressava Dostoiévski.
Dessa forma, a responsabilidade se torna papel exclusivamente do eu; cada ser humano deve assumir sua responsabilidade perante a face do outro. É justamente devido a esse dever do eu de ser responsável que a liberdade vai se mostrando subordinada perante ela. Encontramos o próprio filósofo mencionando a respeito dessa atividade do eu para com a responsabilidade quando diz que ser eu [...] significa não ser capaz de evitar a responsabilidade, porque estou ligado, de uma forma peculiar, ao outro (LÉVINAS apud HUTCHENS, p. 36). Tal pensamento nos conduz a entender o quanto o outro é importante para o eu. O verdadeiro sentido do eu está em fazer as coisas pelo outro, ao se colocar à disposição do outro; por outro lado, o eu tido na modernidade ocidental estava focalizado como aquele que era servido pelo outro. Constatamos a mesma linha de pensamento com Bauman (1997: 19) quando diz que
dado o impacto ambíguo dos esforços societários no campo da legislação ética, deve-se reter que a responsabilidade moral — sendo para o Outro antes de poder ser com o Outro — é a primeira realidade do eu, ponto de partida antes que produto da sociedade.
Responsabilidade pelo outro é um meio para se chegar ao foco, que se traduz num relacionamento ético. Podemos entender a responsabilidade pelo outro sob vários aspectos. Faz-se um tanto importante vê-la ressaltada em relação a nós mesmos, relação a partir da qual somos não só responsáveis pelo outro como, também, por nós mesmos; vê-la em relação ao outro, na qual se encontra a chave primordial da responsabilidade; e, por fim, vê a responsabilidade pelo outro até mesmo partindo de suas ações.
No relacionamento face a face encontramos o início de um caminho que se direciona entre eus e outros diante de um fenômeno chamado de responsabilidade. No nosso cotidiano, nós encontramos pessoas indo e vindo para cumprir suas rotinas. E quando o outro se aproxima, muitas vezes nós não sabemos o que fazer; ficamos na dúvida se falamos ou não, se cumprimentamos ou passamos direto. Essa inquietação nos remete ao fato de nós sermos responsáveis por nós mesmos devido a face do outro, do olhar perturbador dele. Isso quer dizer que deve haver uma preparação do eu quando há a aproximação do outro. O eu deve se preparar no sentido de já estar atento a dar uma resposta para o outro. Não deve haver, por exemplo, frieza em relação ao eu na hora de agir, se não chamaríamos tal atitude como que perpassada pelo mundo sem face. “Responder por” nós mesmos implica aquilo que Lévinas descreve como “substituição” que significa que ninguém pode nos substituir em nossa própria responsabilidade (HUTCHENS, 2007: 40). Percebemos com isso que ser responsável por você mesmo é não fugir do dever que cabe apenas a si. A face do outro traz o apelo de que devemos fazer alguma coisa.
Nesse sentido, uma vez que somos responsáveis por nós mesmos diante da face do outro, nós somos responsáveis, conseqüentemente, pelo outro. E falar em responsabilidade pelo outro é não esquecer de que o termo autonomia entra em discussão. Podemos remeter, segundo Lévinas, a autonomia como aquela que faz com que o eu seja autônomo no sentido de fazer justiça pelo outro, no sentido de agir com responsabilidade. Lévinas nos diz que a atitude de ser responsável pelo outro nos elimina da autonomia que era tida na modernidade, que nos fazia ser livres acima de tudo.
A linguagem levinasiana da autonomia entra aqui exercendo o papel inverso; falávamos da racionalidade ética, que pela qual se é desenvolvida uma autonomia que seja inclinada pelo bem do outro. E é justamente a partir da face do outro que encontramos o dever que cabe a cada um de nós e, também, nos faz ser verdadeiramente sujeito. Muitos autores levinasianos ressaltam o pensamento do filósofo em relação à face do outro como um mandamento que, diante do eu, traz explícito uma obrigação, que é o de servir, enfim, o de estabelecer as condições da comunicação e, a partir daí, o de dar resposta ao seu ato de se manifestar.
Nesse mundo de relações face a face, onde visamos a responsabilidade como essencial para eliminarmos a violência que se manifesta do eu inteligível para com o outro, há, também, o que chamamos de responsabilidade pelas ações dos outros. Quando Lévinas abrange os aspectos de responsabilidade, ele está sempre visando a realidade na qual a humanidade inteira está inserida. Nossas atitudes são, não poucas vezes, perpassadas pela omissão, ou seja, não permitimos a possibilidade da comunicação quando ela era e deveria ser firmada. E tais erros conduzem a algo pior e preocupante para a sociedade como, por exemplo, quando nos referimos à morte e ao sofrimento dos outros. No entanto, e aqui nos alerta Lévinas, nós somos responsáveis por tudo o que acontece; a culpa recai, enfim, sobre o eu. Daí que a “responsabilidade por” significa tanto como se o sofrimento das vítimas fosse meu e como se a ação do agente violento também fosse minha. A mera reação à vítima nos faz responsáveis pelo crime (HUTCHENS, 2007: 43). Por isso que deve haver consciência por parte do eu diante de suas ações. A responsabilidade pelas ações dos outros nos faz sentir sensíveis para com os outros, a ponto de nos colocarmos no lugar do outro e sentir suas dores e suas angústias. Assim acontecendo, o eu, consciente do que não fez e do que deveria fazer, assume toda a responsabilidade pelas conseqüências de sua omissão perante o outro.
A seguinte sentença: Cada um de nós é culpado (por tudo e por todos) perante todos, e eu mais que os outros de Dostoiévski nos direciona para um caminho ético perpassado por Emanuel Lévinas que, uma vez justificando a responsabilidade diante da vivência moderna, na qual enfatizava a liberdade, vem mostrar o verdadeiro sentido da linguagem que remonta ao ato responsável da liberdade humana e a primazia de um relacionamento direcionado pela ética. De tal forma havia pensado a ética o filósofo Hans Jonas, que também colocara a responsabilidade pelo outro como o centro da ética. Devemos sempre enfatizar que todos nós somos outros como, também, igualmente eus que devem responder a presença daquele que expõe seu rosto e sua face. Só a partir do uso de nossa racionalidade perpassada pela ética, enfim, por uma atitude que corresponda aos anseios morais, é que nós teremos uma sociedade cada vez mais justa e equilibrada.
Assim sendo, nós poderíamos ainda tomar outro pensamento de Dostoiévski para corroborar o pensamento de Lévinas e que bem assinala a sua preocupação pela responsabilidade para com o outro. Com efeito, segundo aquele autor, antes de tudo, é preferível dar toda condição ao homem para ele se corrigir e se recuperar do que extinguir-lhe a possibilidade da mudança e “conversão”. Observamos nesse pensamento, simplesmente, uma fundamentação de tudo o que até agora vimos, e, nos faz perceber o quanto a responsabilidade é necessária para todos nós seres humanos que desejamos cada vez mais a felicidade. Mas é também uma obrigação da parte de cada um fazer o outro feliz e ter uma vida justa e digna.

Considerações finais


Todo conhecimento até agora tomado só não será mais uma influência nessa sociedade perturbada e permeada pelos traços típicos dos modernos se, e somente se, direcionarmos cada escrito para uma vivência ética. Seres humanos se “perdem” no mundo do conhecimento por não entenderem esse sentido lingüístico proposto por Lévinas para o cotidiano. O resultado de tal escasso conhecimento se mostra nos fatos que vemos nos programas televisivos e jornais que, de fato, assinalam uma crescente violência em relação à mulher e ao menor e, sobretudo, à falta de respeito para com o outro, daí a justificativa da seguinte questão: como Lévinas resolve a questão acerca da responsabilidade a partir da fundação de uma nova ética?
Mas nós somos chamados a refletir no que tange às relações éticas no diálogo com o outro que se aproxima de nós. Seria, realmente, a compreensão da importância da face do outro a solução para a eliminação do orgulho e da auto-suficiência, uma vez manifestados na violência, enraizados no coração do homem? É justamente essa não compreensão da verdadeira linguagem, a que percorre o caminho de responsabilidade, que Lévinas se direciona para nós, alegando ser preciso um diálogo diferente do qual estamos habituados.
O rosto do outro nos revela muito mais do que o conhecimento que adquirimos até então. O rosto transmite linguagem, nos comunica algo e, uma vez mais, percorre os parâmetros de uma vida ética na sociedade. Lévinas, então, nos faz perceber que o homem só será capaz de reconhecer o outro se tiver sensibilidade para tal. A sensibilidade entra aqui como parte integrante da linguagem no relacionamento face a face. Desse modo, o homem eliminará a violência à medida que carregar consigo a “bandeira da responsabilidade”, enfim, quando ele despertar para a relação com o outro e instituir em si mesmo o traço ético, ao invés de pautar suas ações pelo princípio da subjetividade inteligível.

REFERÊNCIAS


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SOUZA, Ricardo T. de, FARIAS, André Brayner de et FABRI, Marcelo (organizadores). Alteridade e ética: obra comemorativa dos 100 anos de nascimento de Emmanuel Lévinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.

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* Graduando do curso de Filosofia do Seminário Arquidiocesano da Paraíba Imaculada Conceição
**Professor Mestre do curso de Filosofia do Seminário Arquidiocesano da Paraíba Imaculada Conceição
[1] Aprofundaremos esse ponto na 3° seção.

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