2. A COMUNHÃO DO ESPÍRITO NO TEMPO: A TRADIÇÃO
A Comunhão no Espírito não tem somente uma dimensão sincrônica, mas também diacrônica visto que não somente reúne os cristãos de um tempo, mas de todos os tempos, ele é o Sujeito transcendente da economia da salvação. Graças ao Espírito a experiência do ressuscitado sempre poderá ser vivida enquanto transmitida e atualizada na fé, no culto e na comunhão do povo de Deus peregrino no tempo. Esta transmissão total dos bens da salvação que faz da comunidade dos discípulos a atualização permanente da koinonia da idade apostólica em força do Espírito, é a (1) TRADIÇÃO APOSTÓLICA de toda a Igreja. (2) Ao mesmo tempo, por força do mesmo Espírito, a tradição vivente é o seio fecundo da recepção da palavra da salvação para todos os tempos, o lugar onde continuamente se opera a passagem da letra ao Espírito da Escritura (Escritura e Tradição no Espírito). (3) Desta tradição é sinal e instrumento privilegiado a SUCESSÃO APOSTÓLICA DO MINISTÉRIO.
a. A Tradição apostólica da Igreja
Jesus confia aos apóstolos de fazer discípulas todas as nações (Mt 28,19s). Este universalismo exige que o memorial da reconciliação seja celebrado sem interrupção na história até à volta de Jesus Cristo (1 Cor 11,26). Aquele que atualizará a presença salvífica de Jesus através o ministério apostólico de chefe-família e através da inteira vida do povo será o Espírito Santo. Os Atos nos apresentam claramente esta compenetração entre o Espírito e os discípulos (Lc 24,48s; At 1,8). O Espírito e os discípulos estão sempre reunidos (At 5,32; 13,3s; 1 Tm 4,14). Assim em alguns trechos se diz que é Paulo a constituir presbíteros (At 14,23), noutros se afirma quie é o mesmo Espírito (At 20,28). Assim para as decisões solenes os dois estão unidos (At 9,31; 15,28.) mostrando a compenetração recíproca.
Mas é o inteiro NT que nos faz ver a ligação incindível entre o nascimento, a existência e o desenvolvimento da Igreja e o Espírito. Assim o Evangelho se (1) espalha em força do Espírito (1 Ts 1,5; 1 Pd 1,12) e por isto que o (2) ministério é ministério do Espírito (2 Cor 3,8) e a (3) comunidade pé uma carta escrita pelo Espírito (2 Cor 3,3). A salvação doada pelo Senhor é (4) testemunhada pelos dons do Espírito (Hb 2,3s). O (5) deposto da tradição pode ser guardado somente no Espírito (2 Tm 1,14). Mas é, sobretudo João que fala disto: em analogia àquele sobre o qual desce o Espírito e que batiza no Espírito (Jo 1,33s) a comunidade é cheia do Espírito e o doa. O Espírito de vida está neles como fonte de água (7,39), será o consolador (14,16s), será memória do mesmo Cristo e ensinará cada coisa (15,26) e assim será memória viva e atualizante a profecia orientada para o futuro (16,13). E operará no ministério eclesial de reconciliação (20,22s).
Esta permanente atualização do Cristo no seu povo operada pelo Espírito através das estruturas ministeriais e a comunhão fraterna da Igreja é aquilo que se define por TRADIÇÃO: portanto não a simples transmissão material, mas a presença ativa do princípio fontal ( a Páscoa) em toda a história da comunidade por ele reunida. A TRADIÇÃO é a koinonia do Espírito em sua dimensão temporal. A tradição é a continuidade orgânica do edifício em crescimento, que é o Templo Santo, sempre sustentado pelo fundamento apostólico e mantido unido pela pedra angular que é Crist e sempre vivificado pelo Espírito por meio do qual Deus habita nele (Ef 2,19-22).
A Tradição é Apostólica antes de tudo nas suas origens porque Jesus Cristo ordenou pregar a todos. Isto foi fielmente executado tanto pelos apóstolos, os quais na pregação oral, com os seus exemplos e as instituições transmitiram seja o que tinham recebido da boca, do viver e das obras de Cristo e seja o que tinham apreendido pela ação do Espírito, quanto aqueles que sob a inspiração do Espírito puseram por escrito o anúncio da salvação. Os doze continuam a convocação iniciada por Jesus Cristo. A comunidade que assim nasce se reconhece convocada pela palavra apostólica, fundamentada no seu testemunho ocular de Jesus Cristo. Antes se fundaram igrejas na Judéia e depois em todas as cidades.
O que foi transmitido compreende tudo o que contribui à conduta santa e ao aumento da fé do povo de Deus. Assim a Igreja na sua doutrina, na sua vida e no seu culto perpetua a transmite a todas as gerações tudo o que ela é, tudo aquilo que ela crê. A tradição é o Evangelho vivo, anunciado pelos apóstolos em sua integridade procedente de sua experiência única e irrepetível, enquanto encontra sua expressão entre os muitos crentes, sob a influência do Espírito que os vivifica. Por isto não se pode separar a Igreja da Tradição. A Tradição é a história do Espírito na história de sua Igreja.
b. Escritura e Tradição no Espírito
Para responder às exigências do anúncio e do contínuo alimento da fé o testemunho inicial dos apóstolos foi posto por escrito: o processo de transmissão, redação e estruturação formal do qual nasce o NT se realiza sob a ação do Espírito (eis a convicção da Igreja) (Hb 2,3s). Assim as Escrituras são inspiradas (2 Tm 3,15s). E a inspiração de uma Escritura profética é uma moção do Espírito Santo (2 Pd 1,20s).
A Escritura do NT relata a comunhão do Espírito, que a Igreja, é em si mesma a expressão da tradição vivente fundada nos apóstolos. Assim a Sagrada Tradição e a sagrada Escritura são estritamente conjuntas e comunicantes. De fato ambas provêm da mesma fonte divina e formam de certo modo uma coisa só e tendem ao mesmo fim. Assim a Sagrada Escritura é a Palavra de Deus enquanto posta por inscrito sob a ação do Espírito e a Palavra de Deus, confiada por Cristo e o Espírito aos apóstolos vem transmitida integralmente na Sagrada Tradição aos seus sucessores, afim de que estes iluminados pelo Espírito de verdade, com a sua pregação fielmente a conservem, a exponham e a difundam.
A Tradição é a vida do Evangelho e do Espírito na Igreja. Não se pode distingui-la, nem opô-la à Escritura: sem ela a Escritura não teria chegado a nós ou seria incompreensível. A Tradição é o Espírito que explica o Evangelho à Igreja. Mas também sem a Escritura ela não teria normas e nem direitos, tudo poderia ser dito e feito. Disto consegue que se deve considerar verdadeira somente a doutrina que está concorde com a doutrina das igrejas apostólicas, mães e fontes da fé.
À Escritura cabe a primazia sobre a Tradição porque registra a unicidade da experiência apostólica sob a ação do Espírito e por isto que a Tradição sobre ela deve sempre verificar-se. Mas é também verdadeiro que os sentidos profundos da Escritura não se abrem fora da koinonia do Espírito que é a tradição vivente. Esta sempre foi a consciência da Igreja e por isto baste pensar que foi a Igreja a fixar o cânone das Sagradas Escrituras baseando-se no discernimento da fé que os crentes reconhecem como guiado pelo Espírito. O Evangelho da salvação, registrado nas Escrituras, vive na Igreja um modo assim profundo que a koinonia eclesial do Espírito pode ser juiz da autenticidade das mesmas escrituras. É à Tradição que cabe determinar, sob a ação Espírito, a “regula fidei”, o complexo de conteúdos fundamentais da fé apostólica e da praxe cristã, norma e fundamento da pregação e do ensino no cristianismo dos primeiros séculos. Isto já o dizia Irineu no fim do século II.
Surge o problema: como relacionar os dois? De fato, de um lado a Escritura julga a Tradição e do outro, a interpretação das Escrituras que poderia se tornar arbitrária se não existisse um critério mais objetivo para medi-la. A Igreja condenou o fato que a Bíblia pudesse interpretar-se sozinha (Scriptura suipsius interpres) porque assim se poderia demonstrar tudo e o contrário de tudo. Mas também a consciência moderna nos diz que a hermenêutica é marcada pela história dependendo do círculo hermenêutico do sujeito (marcado por condicionamentos os mais diferentes) e objeto.
A Tradição enquanto koinonia do Espírito em sua dimensão temporal mostra aqui a sua eficácia ao serviço da Palavra de Deus contida nas Escrituras: ali onde uma interpretação da revelação expressa um consenso unânime dos intérpretes da Igreja no tempo, tem títulos suficientes para considerá-la parte da fé apostólica. É aquilo que S. Vicente de Lerins escreve na metade do século V (quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est...). A comunhão exigida para reconhecer a autenticidade da Tradição deve ser católica em sentido pleno, ou seja, a universalidade e a antigüidade são consideradas ao mesmo tempo. Assim à pergunta: Qual é a doutrina de Cristo? Dever-se-ia responder: baste olhar o que diz a Tradição unanimemente e perpetuamente.
Mas este princípio leriniano tem limites De fato não se pode olhar a materialidade do testemuho, mas a tradição deve ser avaliada senão o testemunho seria o repetir simplesmente o antigo esquecendo assim todo o elemento de novidade. Assim se a Tradição é a comunhão do Espírito no tempo, e este Espírito sopra onde quer se adverte certo imobilismo na aplicação literária do conteúdo da fé apostólica e da praxe cristã, mas não deve ser isolado a outros critérios como o “sensus fidei”, “consensus fidelium”, da “recepção” e do “carisma da verdade” confiado por Jesus Cristo ao ministério da unidade da Igreja. Enquanto o princípio leriniano se concentra no passado, o SENSUS FIDEI pensa à atual sensibilidade encontrada pelo inteiro Corpo crente.
A koinonia do Espírito se manifesta no hoje da Igreja através desta função da inteligência da fé, por ele mesmo suscitada e guiadas nos crentes: “A totalidade dos crentes ungidos pelo Espírito não pode errar no crer...” (LG 12). No exercício do sensus fidei a memória atualizante do Salvador se une à abertura do novo que Ele mesmo diz às Igrejas nos sinais dos tempos e na experiência do espírito. Mas para que este discernimento seja autêntico é necessário que o consensus tenha sempre o respiro católico e evite qualquer fechamento. Por isto o sensus fidei não pode ser usado como um absoluto, mas deve ser relacionado com a totalidade da Igreja no tempo e com a sua comunhão articulada.
Nesta realidade viva, vivificada pelo Espírito no tempo, a comunhão eclesial na fé pode conhecer desenvolvimento e aprofundamento visto que o Espírito nos conduz à Verdade Plena e por isto que se deve meditar (Lc 2,19.51): os frutos deste crescimento articulado e complexo podem ser reconhecidos pela Igreja em particular através do processo vivo do discernimento e de assimilação chamado de “recepção”” (receptio). Os fundamentos da recepção se relacionam à dúplice convicção que a Igreja universal não pode errar na fé e o consenso, a unanimidade é um efeito do Espírito e um sinal de sua presença. Os frutos do Espírito se deixam reconhecer especialmente ali onde a koinonia é realizada e expressa no tempo e no espaço (Gal 5,22; Jo 16,13; Mt 7,16-20). Ali está presente a tradição apostólica. Mas também estes dois critérios podem dizer muitas mais coisas que o critério de Lerins podia pensar. O que não é aceito hoje poderá ser aceito amanhã e vice-versa e o que é tematizado hoje no sentido de fé ontem não era tematizado.
Eis porque na comunhão da Igreja inteira é necessário um ministério dotado de carisma de discernimento da verdade para a utilidade comum: enquanto a Palavra viva da Revelação é confiada a uma comunidade viva e nesta comunidade existe quem (representando Jesus Cristo bom Pastor) desenvolve a função de chefe do Corpo para que este cresça harmoniosamente articulado na unidade de todos os seus membros.
c. A “sucessão apostólica” do ministério
Clemente romano aos Coríntios, 42.44 fala da transmissão do episcopado dos apóstolos aos seus sucessores: em força da plenitude de poder de Jesus que tem do Pai, ele enviou por sua vez os apóstolos a realizar a convocação do Israel escatológico. Este mandado implica um serviço pastoral (fazei discípulas todas as gentes) e profético (ensinando a observar o que mandei), garantido pela aproximação do Senhor até à consumação do tempo (eu estarei convosco).
Nesta fidelidade os apóstolos primeiramente chamam Matias a integrar o grupo dos Doze (At 1,15-16) e depois chamam outros para participar deste ministério apostólico. Assim também Paulo, chamado por Cristo (Gal 1,18) se confronta com as colunas da Igreja (1 Cor 11,23 e Gal 2,9).
Como para ser apóstolo existe um chamado e depois um envio, assim será o chamado e envio que caracterizará a transmissão deste mesmo mandado de Jesus Cristo para outros. É claro que uma configuração deste mandado não foi sempre igual e se evolverá lentamente, mas já no início do segundo século temos a forma do tríplice ofício de bispo, presbítero e diácono e esta evolução é análogo àquela que levará a fixar o Cânone das Escrituras.
Assim bem logo a sucessão na função episcopal será bem logo assumida como garantia da perseverança na Tradição Apostólica. Testemunha disto é Irineu de Lião (Adversus haereses III,3.1). Ele vê na Igreja romana uma Igreja que está em comunhão com os apóstolos Pedro e Paulo9. Assim a sucessão episcopal da Igreja de Roma se torna sinal, o critério e a garantia da comunhão sem interrupção da fé apostólica. A sucessão episcopal é por isto o critério de permanência de cada Igreja na tradição da fé apostólica e o instrumento através do qual ela alcança a nós desde as origens. A mesma coisa diz Tertuliano: “Indiquem as origens de suas igrejas, listem a ordem de seus bispos... de modo que o seu bispo tenha origem num dos apóstolos...” (De praescriptione Hareticorum 32).
Segundo estas testemunhas a sucessão apostólica do ministério episcopal é a única via que garanta a fiel transmissão do testemunho apostólico. Aquilo que representam os apóstolos na relação entre Cristo e a Igreja nascente, são hoje os epíscopos, não como ligação material, mas o instrumento histórico (significante) do qual o Espírito (significado) se serve para comunicar-se com os eleitos consagrados bispos por meio da imposição das mãos e a oração dos bispos (Baste ver a ordenação sacerdotal em Hipólito Romana na Traditio apostolica, 2).
Desde o II século a ordenação se caracteriza por um elemento cristológico (a continuidade com Cristo por meio da sucessão apostólica do colégio episcopal àquele apostólico) e o eclesiológico (o papel da Igreja na escolha do candidato) e um papel epiclético (a invocação do Espírito que se derrama pela imposição das mãos e da oração). Assim também a sucessão apostólica do ministério se apresenta como um aspecto da comunhão do Espírito Santo no tempo. E por isto a apostolicidade ministerial não só não exclui, mas ao contrário, implica e exige a apostolicidade da fé pondo-se a seu serviço como sinal e instrumento. E por isto que à sucessão do episcopado a Igreja antiga via associado um “carisma certo de verdade” (DV 10). Em particular ao Bispo da Igreja de Roma, centro e critério da comunhão da fé em continuidade com o mandado dado a Pedro (Lc 22,32) por meio da palavra e o testemunho autorizável. Enquanto sucessor de Pedro o bispo da Igreja de Roma é a voz e o garante supremo da tradição apostólica e o é na koinonia do Espírito como verdadeiro servo dos servos.
Mas é claro que não se pode aceitar a sucessão de ministério sem sucessão de doutrina. De fato, a ortodoxia foi sempre considerada pela Igreja como condição indispensável da função ministerial (Não se pode ser sucessores dos apóstolos sem estar na fé dos apóstolos). Santo Anselmo dizia que os bispos salvaguardam a própria autoridade na medida em que concordam com o Cristo e a perdem se estão em desacordo com Ele. Assim S. Tomás: Aos apóstolos e profetas acreditem enquanto o Senhor entregou a mensagem dele e foi confirmada pelo Senhor por meio de milagres e acreditamos nos seus sucessores na medida em que anunciam o que os apóstolos deixaram na Escritura.
Por isto Escritura, Tradição e Igreja (na riqueza de sua articulação carismática e ministerial) não poderão ser separadas no discernimento da fé apostólica. A única koinonia do Espírito no tempo se expressa numa pericorese de aspectos que fazem a complexidade, mas também a riqueza, a insondável profundidade, mas também a beleza, do mistério da Igreja: a Igreja, Evangelho e Tradição estão juntas ou caem juntas.
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