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QUEM FOI O PROFETA JOEL?

O PROFETA JOEL


1. O Profeta e o seu contexto

O nome Joel significa “Javé é Deus”. Na verdade, seu nome é uma proclamação de fé no Deus de Israel. O profeta traz consigo uma certeza que fará diferença na crise em que ele e o povo estão envolvidos. Em meio à crise e ao desespero o profeta se posiciona bem no centro crítico como representante da esperança de Deus para todos. Assim, por exemplo, 2, 7 Joel repete o desafio do Salmo 42,4. 11: “Onde está o teu Deus”? (cf. Malaquias 2, 17) e responde com as palavras que ele encontra especialmente na segunda parte de Isaías (cf. 45, 3-6): “Vocês ficarão sabendo, então, que eu estou no meio de Israel. Eu sou Javé, o Deus de vocês, e não há outro” (Joel 2,27; cf. 4,17).
Todo profeta tem um tempo. Nasce, vive e morre. Possui um passado, participa do di-a-dia e, conseqüentemente, vislumbra o seu futuro e do seu povo. Joel é um profeta ligado aos grandes temas de sua época. Alguém envolvido com as crises que ameaçavam a sua gente.
A mensagem do profeta é sempre endereçada aos seus contemporâneos. Fala aos homens e mulheres da sua própria geração. Sua preocupação final tem relação com a precariedade de vida imposta à sociedade. E, por isso, não desvia seus olhos daquilo que observa. Na verdade, seu olhar é meticuloso. Como observador da própria realidade, não põem “panos quentes” nem “faz de conta” que o tempo em que vive faz parte do desenrolar normal da vida humana. Para Joel a precariedade da vida não é coisa do destino. A hora em que ele vive tem projeção social...
Não devemos classificar o profeta Joel como um filósofo. Seu interesse não é construir uma teoria especulativa a partir de sua observação dos acontecimentos. Ao contrário, o conteúdo de sua fala tem relação com os eventos que experimentava. A interpretação da história que ele apresenta não era inventada por um processo de pensamento, e sim algo que possibilitava expor o sentido que ele experimentava no evento vivido. Tinha a mente aberta para Deus e também para os fatos externos.
Mas qual é o tempo do profeta? É preciso observar que o tempo faz parte de uma construção social e, exatamente por isso, se sujeita a controle político, social, religioso ou ainda econômico. Portanto, pode existir um grupo social que manipule o tempo a seu favor. Todavia, o profeta está atento. Está acima dessas situações manipulativas. Acima delas, mas junto do povo.
Toda interpretação de texto profético que não tenha sentido algum para os contemporâneos do profeta é certamente uma interpretação falsa. Sendo assim, sua posição é repleta de sentido. Joel não é um falso profeta: afinal, ele interpreta a palavra de Javé a partir da vida do povo. Leva seus contemporâneos a sério. Assume a crise instalada em seu tempo e lhe propõe solução. Joel está inserido bem no centro de um tempo de precariedade. É a partir da precariedade das relações sociais que ele proporá soluções. Nada mais justo: Joel é um profeta do seu tempo. Mas qual o tempo de Joel? Nosso profeta é encontrado no começo do século IV a. C. Isso implica dizer que Joel é do período compreendido como pós-exílico.
Em 539 a. C. há um fato que norteará os acontecimentos da vida do povo de Deus. Ciro, rei persa, entra triunfante na cidade da Babilônia. Lá encontra, entre tantos povos, uma comunidade que descendia de cativos trazidos de Jerusalém por Nabudoconozor. Logo em seu primeiro ano de governo na Babilônia, Ciro resolve atender a um pedido da comunidade de exilados e promulga um edito, devolvendo ao povo de Judá os utensílios do templo de Jerusalém. Esse edito pode ser encontrado em Esdras (cf. 1, 2-4):

Ciro, rei da Pérsia, decreta: Javé, o Deus do céu, entregou-me todos os reinos do mundo. Ele me encarregou de construir para ele um Templo em Jerusalém, na terra de Judá. Quem de vocês provém do povo dele? Que o seu Deus esteja com ele. Volte para Jerusalém, para a terra de Judá, para reconstruir o Templo de Javé, o Deus de Israel. Ele é o Deus que reside em Jerusalém. Todos os sobreviventes, de todo lugar para onde tiverem imigrado, receberão da população local prata e ouro, bens e animais, além de ofertas espontâneas para o Templo de Deus, que está em Jesuralém.


Possivelmente o documento tenha sido preservado em sua forma autêntica, e sua importância reside justamente no fato de autorizar a reconstrução do Templo de Jesuralém, pedindo às autoridades locais, os governadores da província de Samaria, que oferecessem ajuda material para semelhante empreitada (Esdras 6, 3-5; 1 Crônicas 36, 22-23).
O tempo de Joel é o tempo do Pós-exílio. É tempo de domínio imperialista. É tempo de precariedade. É tempo de crise. E não há ninguém que não passe por crises durante a sua vida. Individual ou coletivamente, todos passam por elas. E existem crises de todos os tipos. O grande problema, porém, está em nosso posicionamento diante delas. Há pessoas que pensam que, por serem cristãs, estão automaticamente livres das crises. Assim, quando as crises aparecem, elas ficam perdidas, não conseguem entender o sentido daquilo que lhes está acontecendo.
Não é somente a indivíduos que isso acontece. Também os povos enfrentam crises e também eles tentam desvendar o significado delas.
Joel é um dos chamados profetas menores. Sua hora é de crise. Seu livro tem somente quatro capítulos e muita crise. Nem sempre nos lembramos desse texto da Escritura. Às vezes só é lembrado por causa dos versos citados em Atos 2, 17-21. No entanto, o livro do profeta Joel é muito importante. Quem o conhece está mais preparado para viver a hora da crise.                             


2. O livro do profeta
Na série dos Doze profetas o livro de Joel ocupa o segundo lugar, logo após o livro do profeta Oséias e antes do livro do profeta Amós. Sendo o livro de Joel o segundo dos profetas menores. O livro é composto de quatro capítulos, contendo doze núcleos literários distintos: oito na primeira parte (Jl 1-2) e quatro na segunda (Jl 3-4). Os temas mais importantes são uma calamidade (a praga de gafanhotos), a descrição do “dia do senhor”, a exortação ao arrependimento, a efusão do espírito, o juízo dos povos e a restauração de Israel. O livro normalmente data do final do século V - IV a. C.
Podemos dividir o livro de Joel, sem entrar em questões críticas, obedecendo ao seguinte esquema:







Primeira parte: (cap. 1 e 2)
1, 1: introdução (nome do profeta)
1, 2-4: interpelação
1, 5-14: um flagelo destruidor e apelo à lamentação
1, 15-18: Dia de Javé (devastador)
1, 19-20: oração do profeta
2, 1-11: Dia de Javé (irresistível)
2, 12-14: apelo ao arrependimento
2, 15-17: apelo à súplica
2, 18-24: Deus ouve o seu povo
2, 25-27: promessa de abundância

Segunda parte: (cap. 3 e 4)
3, 1-5: Dia de Javé (prodigioso)
4, 1-8: Javé abre um processo contra as nações
4, 9-11: apelo ao confronto
4, 12-17: apelo ao julgamento
4, 18-21: promessa de vida nova.






São muitas as informações curiosas a respeito do livro de Joel. Num primeiro momento podemos destacar que em Joel nunca se menciona o rei; por outro lado, o texto faz referências aos sacerdotes (1,9. 13-14) e aos anciãos (1,2). Outro fato pitoresco é que em Joel não ouvimos falar dos tradicionais inimigos de Israel, os assírios e os babilônios. Em cena estão somente aqueles povos que mantiveram relação com Israel no chamado pós-exílio. Ainda devemos chamar a atenção para outro fato importante: quando no texto de Joel se fala em Israel, ele é identificado com Judá e não mais com as tribos do Norte. O interesse do profeta não está voltado para o Norte (4, 1-2), mas exclusivamente para os habitantes de Judá e de Jerusalém (4, 1.6.19).
Pode-se verificar com certa facilidade a abundância em Joel de passagens paralelas aos livros proféticos e a outros livros do Antigo Testamento. Todavia, a facilidade acaba nessa constatação e outra dificuldade entra em cena. Não há acordo entre os estudiosos quanto a determinar em que sentido aconteceu esse relacionamento, ou seja, se é Joel que depende dos demais ou se são os outros profetas que citam Joel.
A tendência, atualmente, é para a dependência literária do profeta em relação aos que o antecederam. E visto que, entre os profetas citados, aparece também Malaquias (2, 11; 3,4 e Malaquias 3,2. 23), pode-se pensar que Joel tenha escrito o seu livro depois dele.




3. A mensagem do profeta para o seu tempo
Antes de qualquer coisa é preciso conhecer a situação a que se refere o livro do profeta Joel. Ela é apresentada no primeiro capítulo. Uma praga aniquiladora de gafanhotos assolava a terra de Judá. Lá moravam Judeus em torno do Templo de Jesuralém, liderados por sacerdotes e anciãos.
A terra, que estava sendo devastada, era um dos mais fortes laços entre Deus e o seu povo. Todos os dias o povo oferecia o produto da terra no templo do Senhor. Tal oferenda chamava-se “tamid”. Por causa da praga, o povo não tinha mais condições de trazer sua oferta a Deus. “No Templo de Javé não há mais ofertas nem libação de vinho; os sacerdotes, ministros de Javé, estão todos de luto” (1,9).
Além disso, o povo estava sofrendo com traficantes de crianças de Tiro, Sidon e Filistéia. Eles apanhavam judeuzinhos para vendê-los aos gregos como escravos:


Vocês venderam aos gregos os filhos de Judá e de Jerusalém, somente para afastá-los de sua terra. Pois agora, vou tirá-los do lugar para onde foram vendidos. Faço voltar contra vocês àquilo que vocês praticaram (4, 6-7).

Nessa situação crítica o povo de Deus tinha muito memória. Os anciãos lembravam-se das antigas profecias. O fato é que vários profetas tinham falado a respeito do Dia do Senhor. E era possível perceber que naquela crise se cumpriam as suas palavras.
Como reagir aos “gafanhotos”? O profeta Joel orientou o povo, ajudando-o a responder a essa questão.
Sim, o profeta tem ampla função social. Muitas vezes temos a noção errada da presença do profeta na sociedade. Talvez pensemos que ele seja um ser privilegiado que vive ausente dos conflitos ou ainda que sua análise da realidade seja feita a partir de fora. Nada mais errado. O profeta é alguém ligado ao cotidiano. Para o profeta o dia-a-dia é o lugar privilegiado da palavra de Deus. Talvez seja por isso que o cotidiano adquire dimensão nova para os profetas. Pois é ali, bem no presente, onde se nasce, se luta e se sobrevive, que se desenrola a história de cada um.
Certamente, o profeta não fala do que não sabe. Mais ainda, ele só fala daquilo que também vive. Isso indica que está inserido na realidade que analisa. Fala porque vive e vive com o povo as mesmas dores.
O cotidiano é um fenômeno dos profetas. São personagens da vida. O peculiar de Joel é que o seu pequeno livro se origina de uma experiência do cotidiano, ou seja, a contemplação de uma praga de gafanhotos. Seu mundo é agrícola, e, exatamente por isso, a ameaça dos gafanhotos tem para o povo de Deus da época de Joel contornos e imagens de extrema violência e destruição. No imaginário dos camponeses a nuvem de gafanhotos traz imagens impregnadas de pobreza e calamidades. O cotidiano está ameaçado e gera crise no meio do povo. O presente se encontra em vida de destruição. Sem presente não há futuro. Sem campo não há sobrevivência. A vida se encontra sob forte ameaça. Contudo, Joel tem algo para falar.
Joel é intérprete da realidade. Leitor da vida do povo. Profeta profundamente comprometido com a transformação do seu cotidiano. Seus olhos estão em todo o lugar. A impressão é que Joel consegue subir a uma alta montanha e contemplar, em plano geral, toda a extensão do território e aquilo que está acontecendo. Sua observação é arguta e suas conclusões cheias de graça e beleza.
Joel sofre com o que vê. Parece que ele mesmo toma parte na situação. Ao falar de uma catástrofe nacional, discorre sobre as diversas variedades do inseto assolador; observa como se sucedem as nuvens invasoras e pode ainda contemplar os efeitos destruidores nas plantações. A cultura agrícola fatalmente será atingida. O desequilíbrio no campo pode trazer um aumento no sofrimento do povo. A fatalidade certamente sairá do campo para atingir cada um dos camponeses.
Há enorme concentração de catástrofes nas linhas iniciais de Joel. A situação é muito crítica. Aparentemente não há possibilidade alguma do quadro se reverter. É difícil lidar com as crises da vida. Pior é fugir delas. Melhor é o enfrentamento. Viver o conflito para buscar soluções. Profeta também é o homem do conflito. Nunca dá as costas a um conflito. Dele tira as forças para caminhar mais e melhor. Resiste sempre e nunca se rende.
Joel é um profeta em meio à crise. Mas ele mesmo não está em crise. Surge diante de seus contemporâneos como de intensa fé e de profunda esperança. Como se fosse uma placa de sinalização, aponta para o caminho que leva à ruptura com a crise e o desespero.
A calamidade para Joel não foi o ponto final da trajetória histórica de sua gente. Ele usa a calamidade para ensinar. Calamidade leva à conversão. E Joel, partindo precisamente de uma calamidade, mantém a esperança de que a palavra profética de seus predecessores ( Ezequiel, Ageu e Zacarias) não cairá no vazio e no esquecimento. Na verdade, espera o seu cumprimento e o anuncia a plenos pulmões.
O grau de calamidade estampado no texto é enorme. Ele aparece feito círculos concêntricos que estão em constante processo de agigantamento. Cada onda se faz mais feroz e destruidora final. Essas ondas de destruição estão assim caracterizadas no texto:

a) Primeira onda = invasão de gafanhotos (1, 4-10)
b) seca (1, 11.16ss)
c) exército invencível (2, 2-11)
d) sinais cósmicos (3, 3-4)
e) uma batalha universal (4, 9-12)
f) Última onda = a messe e a vindima do mundo (4, 19)


A crise parece não ter precedentes. As sucessivas devastações dos gafanhotos, designadas por quatro termos para indicar a totalidade da destruição, ocorreram durante um período de pelo menos dois anos, conforme podemos perceber na leitura de 2,25: “Estou compensando os anos que foram devorados pelo gafanhoto, o saltador (yeleq), o descascador (hasil), o cortador (gazam), o meu poderoso exército que um dia mandei contra vocês”. Se o presente já se encontra bastante conturbado, o futuro deverá reservar uma intensificação dos desastres. E são exatamente esses desastres que estão dificultando a vida das vilas camponesas. Afinal, o que se perde com as catástrofes tem relação total e imediata com aqueles que vivem do campo.
Mas o que se perde com as catástrofes? A lista é extensa e serve para nos mostrar a complexidade da crise que os camponeses estavam atravessando. Joel faz uma verdadeira viagem pelo campo e descreve meticulosamente o alcance da destruição. Não deixa nada de fora. Sua descrição denota também profundo conhecimento da vida camponesa. Acompanhemos a viagem de Joel e a percepção que ele tem da crise:

1,7 – a videira e a figueira estão secas
1,10 – campos assolados, cereal destruído e olivais murchos
1,11 – a colheita do campo (trigo e cevada) está perdida
1,12 – as árvores frutíferas secaram
1,17 – sementes secaram, os silos foram roubados e os armazéns demolidos
1,18 – gado gemendo, bois e ovelhas perecendo por falta de pasto
1,19 – pastagens consumidas pelo fogo
1,20 – rios secos e estepes devoradas pelo fogo

A impressão é que nada fica de fora. Tudo o que é importante para a sobrevivência do camponês simplesmente se desfaz. Foge feito água por entre os dedos das mãos.
Parece-nos que o profeta está envolvido numa liturgia penitencial literária. O próprio profeta, talvez excitado pela praga agrícola que devasta tudo o que encontra pelo caminho, é o animador e condutor da liturgia. A liturgia acontece da seguinte forma:

1.) Conversão do povo para o ato de luto
2.) Súplica a Deus
3.) Descrição das dificuldades
4.) Resposta de Deus que envolve penitência e conversão
5.) Nova convocação do povo para atos expressos de penitência
6.) Deus responde com perdão e promessa

Mas não podemos esquecer que a hora é urgentíssima. A intensidade da crise leva o profeta a manejar bem as palavras e o modo pelo qual elas devem aparecer. Dessa forma, não há o perigo de lermos um texto monótono. Longe disso, o discurso de Joel nos leva para o dinâmico, faz-nos pensar em ação, contrasta e opõe ações humanas e o mundo do campo. As imagens são sempre vivas e falam por si mesmas. A palavra profética em meio à crise nos chama para a ação em duas formas que se complementam. Ambas são necessárias. Ambas nos levam a vencer a monotonia que a crise queira nos imputar.
            Duas ações. Duas atitudes. A primeira nos leva a viver a partir dos imperativos. Impede a acomodação. Convida a desinstalar-nos do acrisolamento da crise. Não é condicional, e sim um chamado radical a vencer obstáculos. Deve ser por isso que Joel usa e abusa dos imperativos. Até mesmo inflaciona os versículos com ordens claras. Nosso autor é poeta de muito talento. Em 1,2-20 usa o imperativo mais de dez vezes, assim distribuído:

a) Ouçam, prestem atenção, contem (cf. versículos 2 e 3)
b) Acordem, chorem, gemam (cf. versículos 5-7)
c) Fiquem tristes (cf. versículos 8-12)
d) Vistam-se, venham (cf. versículo 13)
e) Proclamem, convoquem, reúnam, gritem (cf. versículos 14-18)

A segunda ação literária do poeta está no realce dos contrastes. Seria como se desejasse mostrar o reverso da medalha. Não basta olhar o aspecto cinzento da crise. Torna-se necessário olhar o contraste. Verificar a possibilidade de encontrar, no reverso da crise, motivos de esperança. E isso o profeta faz com extrema habilidade, concentração e organização. Duas também são as formas encontradas para vislumbrar os contrastes. Vejamos:

a) a partir de categorias da vida humana em que se vive
b) a partir das ações humanas

            A primeira tem relação com as categorias da vida nas quais estamos inseridos. No texto de Joel o universo em destaque é o do campo, da terra, das pastagens e do solo. Assim sendo, o realce dos contrastes tem a seguinte esquematização:


BENÇÃO
Fecundidade
Frutos
Plantas e pastagens
CRISE
Esterilidade
Carestia
Gafanhotos e secas

Já a segunda ação literária tem intensa e clara relação com a atitude das pessoas envolvidas na crise. O texto bíblico revela o seguinte esquema:




Benção
Festa
Hino

Crise
Luto
Súplica


A noção de bênção e crise nasce a partir dos contrastes que Joel está fazendo. Olha o passado e percebe o projeto ideal de Deus para o povo. De volta ao presente, constata a desolação. Do jardim do Edén o profeta vê um deserto. Notemos isso em 2,3: “Diante dele vai um fogo que devora; atrás dele uma chama que incendeia. Diante dele a terra é um jardim do paraíso; atrás dele um deserto arrasado. Nada se salva!” A tradição sobre um “jardim de delícias” encontra-se em muitos textos da Bíblia. Ela ocorre em Gênesis 2, 8.10.15; 3, 23; 4,16; e no Cântico dos Cânticos, em que vislumbramos um jardim para receber os amantes.
A noção mitológica do paraíso ganha impulso formidável na fértil imaginação do profeta Ezequiel (28, 13; 31,9.16.18). O óbvio contraste com a área desolada ocorre, por sua vez, em Ezequiel 36, 55e Isaías 51, 3. Em ambas a ênfase dá-se ao poder transformador de Javé. O profeta Joel usa essa comparação para expressar a completa mudança no estado da natureza em relação ao povo de Deus: de jardim das delícias para o deserto das tormentas.   
Mediante isto, a crise é tão forte que faz pensar numa possível ausência de Javé. Procura-se por Deus nos versos. Vasculha-se por entre as crises e nada! Deus não está no texto! Deus não está presente quando o povo mais precisa dele. É uma conclusão muito possível. Afinal, está tudo escuro. Por onde andará Deus?
Duas situações demonstram fortemente esse aspecto da ausência de Javé e a impossibilidade de reverter a situação. Se nem Deus está próximo, é porque não há solução de espécie alguma.
O primeiro indício da aparente ausência de Javé está em 1, 15: “Ah! Que dia! De fato, o Dia de Javé está próximo e vem como devastação do Todo-poderoso”.
Já dissemos e demonstramos que nosso poeta sabe trabalhar muito bem com as palavras. Aqui ele faz algo fantástico. Um jogo de palavras é utilizado a fim de demonstrar a crise de confissão de fé que também está instilada entre o povo. Diz o texto que o Deus Todo-poderoso (Shaddai) envia uma devastação, flagelo ou calamidade (shod). Devastação também todo-poderosa em seus feitos entre os que trabalham no campo e vivem dele. O jogo de palavras parece insinuar que nesse período da crise, além de Javé estar aparentemente ausente, até o seu nome torna-se agourento. A crise parece ilimitada. É do tamanho de Deus e tão poderosa quanto ele.
Podemos ainda perceber um segundo indício da ausência de Javé. Isso está em 1, 16-17: “Por acaso, o alimento não desapareceu da nossa vista, e a alegria e o contentamento da casa do nosso Deus? A semente secou debaixo da terra, os silos estão vazios, as tulhas estão limpas, pois a colheita se perdeu”.
O profeta iguala os desastres sob o símbolo da falta de alegria. Há desastre no mundo agrícola e há desastre no mundo cultual. Aos olhos do profeta existe interdependência entre esses dois mundos: da terra nasce a colheita, que é recolhida em silos e proporciona alimento aos homens, além de oferendas para Deus e os seus fiéis no Templo, por sua vez, procede a bênção dos campos.
Contudo, a relação entre o mundo agrícola e o cultual encontra-se desnivelada. A harmonia está quebrada. Não há alimento no campo, e sim tristeza. Não há também alimento no Templo de Deus e, por isso, a alegria foi embora. Não é à toa que os sacerdotes iniciam um processo de luto ritual. Em vez de alegria, o luto. Ao invés de ofertar ao Senhor, vive-se a escassez: “Vistam-se de luto e chorem, sacerdotes! Gemam, ministros do altar! Venham dormir em panos de saco, ministros de Deus! Pois não há mais ofertas e libação de vinho no Templo do Deus de vocês” (1, 13).
Os sacerdotes estão de luto, porque no templo faltam os dons da farinha e do vinho (oferta e libação); a terra está de luto, porque ficou sem grão, sem vinho e sem óleo (material do alimento e das ofertas; veja também o Salmo 104, 15 e Levítico 2). Apesar de tudo isto, Joel partindo precisamente de uma calamidade, prevendo inclusive uma catástrofe maior, mantém a esperança de que a palavra profética dos seus predecessores não cairá no vazio. Espera o cumprimento dela e o anuncia.
A partir de uma perspectiva histórica, Joel não aparece como um profeta tosco, muito menos como um falso profeta. Surge diante dos seus contemporâneos como um homem de profunda de fé e profunda esperança. Ao mesmo tempo, não se limita a consolar. Sacode as consciências, obriga a dar o salto do presente para o futuro, das necessidades primárias para a tarefa definitiva, da angústia pela comida e pela bebida para a colaboração no grande projeto de Deus.




4. Atualidade do profeta

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