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A VIRGEM MARIA (Visitação e Magnificat)

Assunção de Nossa Senhora

Visitação e Magnificat
(Lucas 1, 39-56)


Introdução:

Se seguirmos, com certa lógica a narrações de Lucas, teremos que nos perguntar quem ou quais foram às testemunhas oculares (Lucas 1,2), dos fatos que se cumpriram entre nós. São essas do evangelho de hoje tão singulares que só duas pessoas podiam servir a esse propósito: Maria e Isabel. Descartada esta última, porque de idade avançada (1, 7) na hora dos sucessos narrados, impediria que estivesse viva no tempo de Lucas escrever seu evangelho, Maria é a única testemunha e, portanto podemos afirmar que estes evangelhos da infância são ou constituem o evangelho de Maria, suas experiências religiosas em profundidade e suas memórias. Se no resto do evangelho temos o testemunho de Jesus como palavra do Pai, nestes marcos da infância de Jesus encontramos o depoimento da vivência da atuação divina sobre a criatura escolhida para ser mãe do salvador, a educadora do Filho de Deus na terra. É importante do ponto de vista de todas as mães que estão grávidas saberem como a mãe de Deus respondeu a essa vocação para a qual unicamente a mulher é chamada. E apesar dos grandes favores divinos, encontramos em Maria uma humildade e uma obediência que se unem com os planos de Deus, de modo a formar um duo de extraordinária convergência, como deve ser toda existência humana quando encontra sua íntima realidade no Deus que a ama e se torna Pai e Senhor. Vejamos parágrafo após parágrafo, as miudezas desta íntima união mulher-Deus à semelhança da união homem Jesus-Deus.

A viagem

Tendo, pois, se levantado Mariam nesses dias, partiu para a montanha, com pressa, para uma cidade de Judá (39). Levantando-se é um hebraísmo que indica a origem aramaica do relato e que coincide com alguns relatos do AT como (Gn 13, 17): Levanta-te, percorre essa terra. Mariam é o nome com o qual Lucas se refere pessoalmente pelo onomástico, em nominativo, 6 vezes, à mãe de Jesus no seu evangelho. Além de Lucas, unicamente Mateus e uma única vez, se refere a Maria como Miriam em nominativo. As outras mulheres recebem em grego o nome de Maria, de modo que Mariam é exclusivo de Nossa Senhora. Mariam, mariamme ou Miriam são nomes idênticos, devido à transposição de vogais nas línguas semíticas. Mariam aparece em (Nm 26, 29) como o nome da irmã de Moisés como transcrição ao grego do hebraico Miriam de onde se derivam Mariamme ou Mariamne. O significado mais comum para esta palavra é senhora, de onde se deriva Nossa Senhora ou Our Lady em inglês. A Montanha: O grego usa um adjetivo [montanhoso], pois se subentende a palavra região. Era precisamente a região média de Judá, uma franja de aproximadamente 20 km de largura por 60 km de comprimento que compreendia a parte central de Judá, este último sendo a margem do mar Morto. Falar da montanha, nos tempos de Jesus, era em termos técnicos dessa região, como se falássemos do Sertão no Brasil. Qual era a cidade de Judá? Uma tradição anterior às cruzadas aponta a atual aldeia de Anin Karin, pequena vila perto de Jerusalém, com sendo a polis [cidade] onde tinha sua residência o casal Zacarias/Elizabeth. Outros falam de Hebron, cidade sacerdotal por excelência, a 30 km ao sul de Jerusalém.

Zacarias e Isabel

E entrou na casa de Zacarias e saudou Elisabeth (40). Entrar na casa Zacarias era o termo exato, segundo os costumes da época. O marido era o dono de todos os bens móveis e imóveis da casa. Zacarias era um sacerdote da classe de Abias (Lc 1,5) já entrando em anos. Seu nome significa Jahvé se lembra. Elisabeth significa Deus faz pacto. Era o mesmo nome que a esposa de Aarão, o irmão de Moisés. De Elisabeth se derivam as palavras Isabel e Elisa. Dado o simbolismo dentro da Escritura, podemos definir o encontro das duas mulheres desta forma: A Senhora [Mariam] foi visitar a casa de quem foi lembrado por Deus [Zacarias] porque cumpriu seu juramento ou pacto [Elisabeth] que tinha; dão origem a um bebê Johanam que era um dom precioso de Jahvé.

A ação do Espírito

E sucedeu assim que ouviu Elisabeth a saudação de Maria, pulou o feto em seu ventre e Elisabeth ficou cheia de Espírito sagrado (41). Temos traduzido o grego da melhor maneira possível dentro do sentido literal. A saudação seria o shalom leka [paz contigo] na falta de detalhes para conhecer o conjunto do relato, Lucas só fixa a atenção nas palavras proféticas de ambas as mulheres, que indicam a presença divina reveladora de planos e políticos gerais úteis para a salvação. Em primeiro lugar, vemos como o feto pula de exultante alegria. A alegria do feto foi notada de imediato pela mãe, que nesse momento falou como instrumento divino, pois ficou repleta do espírito. Ambos, feto e mãe foram movidos por um impulso sobrenatural. João conheceu nesse instante o futuro cordeiro de Deus (Jo 1, 29), do qual ele já nesse instante era o arauto, pois seria a voz que clamava no deserto (Lc 3, 4) para preparar a presença de quem o visitava nessa hora. Não podia falar, mas a alegria que o fazia pular era a mesma alegria que os profetas e patriarcas teriam sentido se estivessem presentes também nessa hora (Lc. 10, 24 e Jo 8, 56). Se o filho se mostrou profeta a mãe não foi menor nesse desempenho. Segundo Lucas ela foi repleta de um espírito sagrado [ou divino]. Esta tradução não exclui a tradução tradicional de cheia do Espírito Santo. Porque esse espírito do grego era precisamente o Espírito do Senhor, espírito que falava pelos profetas, como aconteceu com Saul, tomado pelo mesmo no meio dos profetas em Gabaá (1 Sm 10, 10). No NT o Espírito do Senhor se transforma em Spiritus Sanctus [pneuma ágios grego] que temos traduzido por espírito sagrado, ou melhor, espírito divino e que as bíblias modernas traduzem por espírito santo como em [Mc 12, 36], quando Jesus fala de Davi como inspirado pelo Espírito, o divino. Ou seja, o que antigamente era o Espírito do Senhor [tudo atribuído diretamente à causa primeira] agora pode ser atribuído às causas segundas [um espírito que tem sua origem na divindade] ou através da revelação da Trindade a terceira pessoa: o Espírito Santo. Esse espírito era o mesmo do filho de Isabel que estava cheio dele ainda no seio da sua mãe (Lc 1,15). Sem dúvida que nos pulos de alegria do feto, o evangelista enxerga o espírito profético de quem diria ser Jesus mais do que um profeta (Mt 11, 9).

Bendita

E exclamou em voz alta e disse: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto de teu ventre” (42). O eulogemene grego deveria ser traduzido por abençoada, já que é o particípio passivo do verbo eulogeo [originalmente falar bem, louvar, elogiar], seguindo o costume hebraico de atribuir o sujeito da passiva ao próprio Deus, significa que o objeto desse mesmo verbo é atingido pela ação divina que não pode ser outra que um ato favorável de grande mercê por parte do Todo-poderoso. As línguas semitas usam o comparativo no lugar do superlativo e a frase significará: Tu és a mulher mais favorecida por Deus. Outra tradução pode ser: Tu serás a mais exaltada das mulheres. Diferentemente do Makarios das Bem-aventuranças, cujo significado é feliz, ditoso, o eulogemene de Isabel está na série de Kecharitomene [superfavorecida] de Gabriel quando da saudação em Lc 1, 28. Na época, a benção de uma mulher estava sempre ligada aos seus filhos. E é isso precisamente o que Isabel declara na continuação, exatamente como foi a benção dada por uma mulher do auditório a Maria, segundo Lc 11, 27: Ditoso o ventre que te gerou e os seios que te amamentaram. Os árabes falam de beraká [da raiz semita berak=bendizer], ou seja, a sorte ou sina de quem é privilegiado por Alah. Eles respeitam essa pessoa como os xitoístas [religião oficial do japão] respeitam uma árvore atingida por um raio. Constituem o sagrado dentro da predileção divina. Parece que Isabel iguala a Mãe com o Filho, do qual afirma também ser louvado. Melquisedec abençoa de modo duplo tanto Abraão como Deus. Bendito seja Abraão pelo Deus Altíssimo, que criou céu e terra. Bendito seja o Deus Altíssimo que entregou teus inimigos às tuas mãos (Gn 14, 19-20). A primeira benção de Isabel é uma comparação entre mães: bendita tu entre as mulheres. A segunda é uma bênção absoluta dada a um futuro homem que será extraordinário aos olhos de Deus: Bendito o fruto do teu ventre.

Mãe de Deus

Porque de onde a mim isto: que tenha vindo a Mãe do meu Senhor a mim? (43). A frase é semelhante à pronunciada por Davi em 2 Sm 6,9: Como poderia vir a minha casa a arca do Senhor? A saudação de Isabel compara Maria com a Arca da Aliança. É por isso que Lucas diz que Maria esteve três meses em casa de Zacarias; os mesmos três meses que esteve a Arca da Aliança na casa de Obed-Edon. Meu senhor significa no AT meu rei. E Maria seria a rainha como mãe de um rei, exatamente como em 1Rs 2,19: Mandou pôr um trono para a mãe do rei. O importante é que Jesus é chamado Senhor, ou Kyrios, que pode indicar uma identificação com Yahweh, que é traduzido por Kyrios na setenta. A expressão meu Senhor aparece em Lucas 20, 41-42, citamdo o salmo 110: O Senhor é Yahweh, meu Senhor tem um significado claramente messiânico. Um comentarista evangélico, crente segundo o popular sentido da palavra [John Gill], vê nesta frase – Mãe do meu Senhor – uma identificação com o título oficial de Maria em Éfeso: THEÓTOKOS, ou seja, Mãe de Deus.

A presença de Maria

Eis, pois, que quando surgiu o som de tua saudação em meus ouvidos, pulou de extremo gozo o feto em meu ventre (44). A maioria dos comentaristas falará da presença de Jesus como causa das palavras de Isabel. Mas tanto o versículo anterior como este que comentamos agora, indica que foi a voz de Maria a que suscitou tanto o júbilo de João como a reação de Isabel. Outros eram os tempos em que se pensava que o feto era surdo, cego e mudo. Hoje sabemos que ele distingue as vozes, que ele pode perfeitamente escutar. E a voz de Maria, que devia ser a de uma estranha, não foi nada disso: foi uma voz amiga, voz que seria as delícias de Jesus e à qual este obedeceu em Caná: Faça tudo o que Ele vos disser: (Jo 2, 50). Como todo mediador secundário, Maria exerce seu ministério em função de que o poder divino gosta de se repartir e funcionar através dos seres mais próximos a nós como são os anjos, por exemplo. Se no AT, quando esses seres eram evitados, era o anjo do Senhor o executor de seus desígnios, hoje sabemos que esses mesmos anjos têm personalidade própria e são verdadeiros ministros de Deus. Maria, nesta ocasião foi também ministra de Deus, porque cuidou de Isabel antes do nascimento de seu João [foi o anjo da casa de Zacarias] e com seu canto explicou a nova planificação divina esperada para o novo Filho e os novos filhos de Deus como profeta divina.

Feliz

E feliz tu que acreditaste porque haverá cumprimento às coisas faladas a ti pelo Senhor (45). Lucas aqui usa uma palavra diferente nesta nova benção que se transforma em (makarismo), ou seja, em invejosa admiração por parte do homem. Se (eulogemene) era a palavra própria para ver na criatura o dom de Deus, (makaria) é a palavra que corresponde a admiração de parte do ser humano que contempla os fatos e os considera como modelos a desejar. Com certeza Isabel compara a atitude do seu esposo que ficou surdo e mudo por causa de sua incredulidade, com a presteza com que Maria aceitou a proposição de Gabriel para se tornar mãe do Messias. O (eulogemenes), uma bênção unida a uma mercê divina, agora se transforma em (makaria), termo grego que indica uma felicitação por um ato meritório. O termo ressalta o lado positivo, quando a maioria das pessoas estava com a sorte contrária ou negativa. Sem dúvida que aqui possui a ênfase está posta na fé de Maria e não no cumprimento ou realização das palavras proferidas por Gabriel de que seria mãe do Messias. Diante do fato de Zacarias, o esposo incrédulo, castigado com a mudez por sua dúvida em acreditar nas palavras do anjo, Isabel realça a fé de Maria como um mérito a ser justamente valorizado. Além de mãe ela era crente e por isso acontecerá uma grande felicidade em sua vida: o que acreditou será cumprido pormenorizadamente. Ver cumpridas as promessas do Senhor na própria vida é a benção da qual Josué falava no seu testamento (Js 23, 14): Tudo se realizou em vosso favor e nenhuma [das promessas] falhou.

O Magnificat

O cântico do Magnificat como é conhecido pela tradução latina, é um dos três que Lucas oferece em seu evangelho. Sem dúvida que tem como modelo outros cânticos do AT como o de Moisés em Ex 15, 1-18 e a pequena estrofe de Miriam no versículo 21. Assim se inaugura uma ação de graças com um cântico de louvor pelos feitos maravilhosos, provindo das mãos do Senhor. Porém o cântico que está mais perto do nosso Magnificat é o de Ana em 1 Sm 2,1-10: Tenho o coração alegre, graças ao Senhor; e a fronte erguida, graças ao Senhor. Minha boca abre-se contra os meus inimigos: eu me alegro pela tua vitória (...). O Senhor torna pobre e enriquece, rebaixa e também exalta. Ergue o fraco da poeira e retira o pobre do monturo, fazendo-os sentarem-se como os príncipes e atribuir-lhe um lugar de honra. A questão é se o canto foi um espontâneo de Maria ou fruto de um poeta cristão posterior. O mais provável é que Maria meditou muito durante a viagem de três dias e tivesse composto o Magnificat meditando os cânticos de Ana e de Judith: Deus, o nosso Deus, está conosco que não retirou sua casa de Israel e sua força contra os inimigos (13,11). E louvai a Deus que não retirou sua misericórdia da casa de Israel, mas esmagou nossos inimigos, por minha mão, esta noite (13,14). Se em Ana o impulso que a levou ao Cântico é o nascimento do filho, em Judith é a vitória de Israel sobre os inimigos. Ambas as razões estão unidas no Cântico de Maria.




Estrutura do Magnificat
Dividiremos o Magnificat em três partes:

  1. Introdução (47);

  1. Razão do Louvor (48-53);

  1. Especial providência para com Israel, figura ao amor que Deus manifestou a Maria (54-55);

  1. Tentaremos explicar cada uma das partes;


Introdução

E disse a Maria: Enaltece minha alma ao Senhor (46). E meu espírito encheu-se de gozo no meu Deus Salvador (48). Esta introdução constitui um Beraká, ou louvor em alta voz. Louvor de agradecimento a Deus, que é Senhor [kyrios] e a Deus que é seu Salvador [ò Theós, ò Soter]. O grego usa o verbo megaleno, que significa engrandecer tal e quais traduzem a versão portuguesa e italiana. Também a vulgata, usando o magnificat, traduz literalmente o grego. Porém podemos traduzi-lo livremente, como faz a versão espanhola por glorificar ou exaltar a Deus. De fato, esta última versão é a preferida pela bíblia espanhola: Exalta minha alma ao Senhor. Esta introdução é, pois, um grito de louvor, ou melhor, de ação de graças por um benefício recebido. Não podemos esquecer que nas línguas semíticas não existe a palavra agradecer que é substituída por louvar ou exaltar. A segunda parte da introdução é o gozo existente por ter visto de perto a ação salvífica divina. Tanto Deus em si mesmo como na sua manifestação de Salvador estão com artigo, indicando uma realidade definida e bem perto de Maria.

Razão do Louvor

Porque fixou seu olhar na insignificância de sua serva. Eis, pois que a partir de agora chamar-me-ão ditosa, as gerações (48). Fixou seu olhar: o verbo epiblepo, mais do que um simples olhar significa observar, prestar atenção. É o respexit latino e por isso temos traduzido por fixou seu olhar. Outra palavra não bem traduzida é tapenoises, talvez porque o latim usa humilitas [humildade], que pode significar uma virtude contrária à soberba e assim foi vertida nas línguas vernáculas. Por isso a tradução moderna espanhola diz: Se há fijado em la humilde condición de su esclava. Já a italiana diz: Há consuderato I’umilta della sua serva. As duas portuguesas mais em uso dirão: olhou para a humilhação de sua serva (B de Jerusalém) e contemplou na (sic) humildade de sua serva (RA evangélica). Esta última aparece um tanto irregular na sua sintaxe. Tapeinosis pode ser também uma condição nativa de impotência e insignificância, ou seja, ser pequeno em relação aos outros. Daí que o olhar deve ser meticuloso; um observador como indica Latim um respicio, considerar, olhar com atenção, com piedade. Doule é a serva latina, que o espanhol traduz por esclava e o latim como ancilla [escrava doméstica]. Doule será, pois, traduzida mais propriamente por escrava e não serva já que o grego indica a escrava propriamente dita. A primeira razão da ação de graças é, pois, a natureza transcendental ou divina de quem provém à eleição traduzida em benevolência: Deus. A segunda é a pequenez da qual ele se deixou conquistar, pois escolheu um ser insignificante como é uma escrava. É por isso que todas as gerações a chamarão bendita [de Deus]. O grego diz me abençoarão que muitos traduzem por chamar-me-ão bem-aventurada. Não é uma tradução feliz como resultado do conjunto ou contexto, e melhor seria considerarão que sou de Deus.

Privilégios

Porque fez para mim grandes coisas o Poderoso já que é sagrado seu nome (49). Grandes coisas: o adjetivo que significa excelente, magnífico, maravilhoso. Unido ao que significa poderoso, temos que as obras realizadas eram de tal forma extraordinária que só poderiam ser feitas por quem tinha uma faculdade transcendente ou divina. O poderoso [com artigo] era um dos títulos com os quais os judeus substituíam o nome santo HASHEM ou HASHEM YITBARAH [o nome recôndito]. É com esse nome [o poderoso] que Jesus responde à conjura de Caifás (Mt 26, 64). Só que nesta última circunstancia, usa-se o substantivo DYNAMS [poder]. Sem especificar quais eram essas coisas, Maria termina com louvor dedicado a esse nome que era sagrado: Já que seu nome é sagrado. Isto pode significar que não pode ser pronunciado e que poderíamos traduzir por seu nome é único como divino. A tradução do Kai [e] por já que é possível porque o Wau semita do qual procede tem o significado de conjunção causal ou explicativa tanto como conjuntiva. Sem dúvida que a base das grandes coisas feitas pelo poder divino era a maternidade especial de Maria da qual Isabel era testemunha através do espírito de profecia (43).

A misericórdia Divina

Pois a misericórdia dele até geração para os que o temem (50). O semitismo até geração de gerações indica que sua misericórdia, o amor com que se ama a um desvalido ou necessitado para ajudá-lo, transpassa os limites de uma geração [eis pasa geneas, para todas as gerações], chegando só até a quarta se é para castigo (EX 20, 5). Maria oferece uma definição da atuação divina que merece a pena considerar: Deus é misericórdia para os que o respeitam, pois assim devemos traduzir o Fobeo [temer] grego quando referido a Deus. Respeito e reverência que se traduz em obediência às leis de modo escrupuloso. A misericórdia é um ato de amor correspondente a quem se inclina ao mais fraco para ajudá-lo e consolá-lo. Esta é a linha geral que Maria descobriu em Deus, através da escolha particular de sua insignificante pessoa.

O braço

Fez força no seu braço: desbaratou os arrogantes de pensamento no íntimo de seus corações (51). Para melhor entender o versículo poderíamos traduzir: Seu braço mostrou-se poderoso ao desbaratar os arrogantes de pensamento no íntimo de seus corações.

            A frase tem dois sentidos:

A)    O particular de uma batalha em que são derrotados os inimigos de Israel como aconteceu no caso de Judith (Jt 9, 4 e 13, 14) e o verbo pode ser empregado com toda a literalidade do mesmo, como dispersar ou desbaratar, do qual fala o Salmo 89, 11: esmagaste Raab como um cadáver, dispersaste teus inimigos com teu braço poderoso, como modelo da canção Mariana. É esse braço cuja destra esplendorosa de poder esmaga o inimigo (Ex 15, 6).

B)    Ou o sentido geral de todos os que têm orgulho de ser melhores e mais poderosos que os humildes e então o modelo é o canto de Ana: O arco dos poderosos é quebrado; os debilitados são cingidos de força (1 Sm 2, 4). Neste último caso optaremos por uma tradução menos literal e no lugar do dispersou, usaremos peneirou como palha, descartando-os como a palha é descartada do trigo.

Os poderosos

Rebaixou os poderosos dos tronos e exaltou os de humilde condição (52). Aos famintos cumulou de bens e aos ricos despediram vazios (53). Os poderosos são chamados de Dynastes cujo significado é príncipe ou potentado. Daí que sejam destronados esses homens de poder. Os famintos podem ser traduzidos como quem carece do necessário. Daí que poderíamos traduzir: aos necessitados cumulou de bens e aos ricos despediram vazios. Neste ponto Maria segue o Sl 107, 9 e o Cântico de Ana: os que viviam na fartura se empregam por comida. Os que tinham fome não precisam trabalhar (1 Sm 2, 4-5). Maria acompanha a política de Jesus nas bem-aventuranças, de modo especial a redação de Lucas: Benditos os famintos... Aí de vós os saciados agora (Lc 6).

Israel, o Servo

Abraçou Israel, seu filho para se recordar da misericórdia (54) como falou aos nossos pais, Abraão e à sua prole pelos séculos (55). Temos traduzido o grego como abraçar, ou suster; mas poderíamos muito bem traduzi-lo por proteger. O grego pode ser traduzido por filho, a primeira acepção, ou por servo. Em Êxodo 4, 22 Jahvé (DEUS) chama Israel de seu filho. É melhor usar a acepção de filho, embora em Is. 41 8-9 a palavra seja que propriamente significa servo. Através da História, a benevolência divina dada a Abraão e à sua semente [sua prole ou descendência] foi para sempre. Relembra o Gn 17, 7: Esta aliança perene fará de mim teu Deus e Deus de tua descendência.
Três meses
Permaneceu, pois, Maria com ela [Isabel] como três meses e voltou a sua casa [a Nazaré]. Sem dúvida que era o tempo faltava para que Isabel desse à luz seu filho e Maria consequentemente ficou com a anciã parenta até o momento do nascimento de João. Assim se explicam os detalhes do mesmo de que Lucas é narrador e Maria, sem dúvida, a testemunha.

Pistas

  • Os evangelhos deveriam ser relatos de salvação, referidos a fatos e ditos de Jesus. Mas este relato de hoje tem como protagonista Maria. Ela é a figura central já que o filho ainda era um feto que carregava no seio e dependia totalmente da mãe. Isso nos indica que Maria está unida intrinsicamente a seu filho na história da salvação. A devoção especial que a Igreja dedica a Maria tem como base este relato de Lucas. Ela forma parte de nossa salvação como mãe do Senhor (43).
  • Maria é mais do que a Arca do Senhor que Davi humildemente recebeu maravilhado (2 Sm 6, 9). Ela é a Mãe do Senhor. Recebê-la como visita é um favor que nos iguala a Isabel e escutar o Magnificat é entrar nos planos da providência divina para encontrarmos um alívio a nossa pequenez e insignificância. Não em nossos méritos, mas nessas circunstâncias, aparentemente desfavoráveis, encontraremos a bondade divina expressa em misericórdia.
  • Nestes tempos em que a maternidade parece estar fora de moda, o encontro entre as duas futuras mães, é um toque de gozo e esperança, como a renovação da vida que sempre é acompanhada de penalidades, mas que indubitavelmente termina em feliz regeneração.
  • Isabel, como profeta de Deus, dá a Maria o título máximo que a representa ao povo de Deus: Mãe do Senhor, que o concílio de Éfeso expressou em termos mais filosóficos como Theótokos, ou Dei Genitrix, e que o povo aclama como Mãe de Deus. Venerá-la e recorrer a sua intercessão é seguir as linhas mestras que Lucas nos propõe no seu evangelho.
  • Isabel a proclama como modelo entre as mulheres. Não é querendo tronos que estaremos na mira da misericórdia divina, mas sentindo nossa insignificância que veremos sua bondade refletida como favor e benevolência em nossas vidas.


Uma das aparições de Nossa Senhora

Entre as visitas de Nossa Senhora vamos contar uma pouco conhecida: a de Nossa Senhora de Caravaggio. O nome é mais conhecido porque foi lá que nasceu Michelangelo Merisi apelidado Il Caravaggio, um dos grandes pintores de todos os tempos, mestre do claro-escuro. Gianette Vacchi era uma jovem italiana forçada a se casar com Francesco Varolli num lugarejo de nome Caravaggio a cerca de 40 km de Milão, no norte da Itália. Frequentemente ela era caluniada, insultada e espancada pelo marido, transformado em verdadeiro carrasco. Em 26 de Maio de 1432 depois de apanhar de forma brutal como de costume, o marido ordenou que ela fosse ceifar e trazer feno. Gianetta obedeceu e foi ao campo de Mazzolengo distante cerca de uma légua de Caravaggio. Quando o dia chegou ao fim, ela olhou para o feno e sabia que não teria forças para levá-lo, pois exigia duas viagens. Temendo apanhar mais do marido, a moça pediu ajuda a Nossa Senhora. De repente, surgiu uma Senhora de aparência nobre, tendo nos ombros um manto azul e um véu branco sobre a cabeça. A santa revelou uma mensagem de paz ao povo sofrido pelas guerras e as carestias. Pediu a todos o jejum a pão e água na sexta feira e deixou como sinal de sua presença uma fonte de água borbulhante e uma roseira [sinal de força sobrenatural, pois Maria é chamada a Rosa do céu]. O santuário é conhecido como Nossa Signora Della Fontana. Sempre a revelação sobrenatural exige de nós algum sacrifício para que sua presença seja útil ao entrarmos nos planos divinos de participar da bondade que tem como finalidade dar-se e dar. Mas sempre podemos afirmar a verdade do que está escrito numa estampa de Maria: Não te mereço, Mãe; porém preciso de ti.


“O peso material torna precioso o ouro e o peso moral valoriza uma pessoa”.
Baltasar Gacián

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